Em latim, como refere a autora citada pelo consulente, a voz passiva admite tanto formas sintéticas, que apresentam desinências próprias, como formas analíticas, criadas por meio do verbo auxiliar esse («ser»). Tomando como exemplo o verbo amare («amar») e limitando a análise, para facilitar a exposição, à terceira pessoa do singular, passo a apresentar os modos e tempos mais relevantes:
presente do indicativo: amatur («é amado»)
presente do conjuntivo: ametur («seja amado»)
imperfeito do conjuntivo: amabatur («era amado»)
perfeito do indicativo: amatus est («foi amado»)
mais que perfeito do indicativo: amatus erat («tinha sido amado»)
Era assim em latim clássico. Este sistema, porém, não estava isento de ambiguidades, sobretudo no que diz respeito a certos verbos, que exprimem uma ação normalmente de curta duração e de resultado concreto. É o caso do verbo claudere («fechar»), cujo particípio assume a forma clausus («fechado») no género masculino e clausa e clausum nos géneros feminino e neutro. Uma frase como, por exemplo, ianua clausa est tanto podia significar «a porta está fechada» (resultado atual de uma ação passada, à qual não se dá a menor relevância) como «a porta foi fechada» (ação passada apresentada como tal, independentemente do resultado da mesma).
Para evitar tal ambiguidade, cedo se manifestou a tendência, sobretudo na linguagem falada, de reservar clausa est para exprimir o resultado da ação («está fechada») e de expressar o passado simples, sem qualquer ideia acessória de resultado, por clausa fuit («foi fechada»). Já em Plauto, cujas obras são das mais antigas que nos chegaram em latim, encontramos vestígios desta tendência: capiunt praedones navem illam ubi vectus fui1 («os salteadores apoderam-se do navio onde eu fui transportado»). Numa prosa lidimamente clássica, seria de esperar vectus sum («fui transportado») em vez de vectus fui, mas importa não esquecer que Plauto, no seu papel de dramaturgo, emprestava aos diálogos uma linguagem eivada de tropos e locuções próprios da fala popular.
Num escritor mais tardio, como Eutrópio, que certamente se valia de um estilo mais sisudo, próprio de reputado historiador, encontramos igualmente vestígios dessa tendência, como fuerat expulsus2, em vez de erat expulsus («tinha sido expulso») e fuerat eversa3, em vez de erat eversa («tinha sido destruída»). Sempre em nome da clareza do discurso, para evitar ambiguidades...
Houve outro fator que propiciou a perda das desinências próprias da voz passiva e a substituição das formas sintéticas por formas analíticas: a “concorrência” dos adjetivos. Se olharmos para uma expressão como amatus est, a qual, em latim clássico, como vimos, significava não «é amado» mas «foi amado», e se a compararmos com carus est («é querido/amado»), constituída não por um particípio mas por um adjetivo ordinário, apercebemo-nos da seguinte incongruência: o significado de amatus e carus é praticamente o mesmo, mas a forma verbal refere-se, no caso da primeira expressão, a uma situação passada, enquanto na segunda se trata do presente. Na boca do povo, tal incongruência cedo tendeu a desaparecer, passando a dizer-se amatus est para situações referentes ao presente, por influência de carus est, e amatus fuit para exprimir o passado.
Com o tempo, estas tendências de simplificação e uniformização acabaram por relegar completamente as desinências da voz passiva, que foram suplantadas por formas analíticas. Formas como amatur («é amado») e amabatur («era amado») desapareceram progressivamente em latim vulgar, sendo substituídas por amatus est e amatus erat, o que propiciou a proliferação de amatus fuit e amatus fuerat para exprimir a ideia de passado. Como seria de esperar, as línguas românicas, incluindo o francês e o português, apresentam apenas formas analíticas na voz passiva, tomadas diretamente do latim vulgar. As desinências da voz passiva latina não deixaram qualquer rasto na conjugação verbal das línguas românicas subsistindo apenas em raros vocábulos de origem erudita, autênticos latinismos, como imprimatur, que o Houaiss eletrónico grafa, e julgo que bem, imprimátur, derivado de imprimatur («imprima-se»), forma passiva da terceira pessoal do singular do presente do conjuntivo do verbo imprimere («imprimir»)...
1 Mil. 118.
2 Lib. I, X.
3 Lib. IV, XXI.