A sinestesia e a metáfora num verso de Fernando Pessoa
No verso «Barco indelével pelo espaço da alma» está presente uma metáfora, ou uma hipálage?
No verso «Barco indelével pelo espaço da alma» está presente uma metáfora, ou uma hipálage?
Tal como ao longo dos versos do poema a que pertence, nesse primeiro verso — «Barco indelével pelo espaço da alma» — da penúltima estrofe de «Cai chuva. É noite» (de Fernando Pessoa) sobressaem as sensações que atravessam todo o texto, construindo a imagem de humidade e de mal-estar, aqui criada pela evocação do «barco indelével», intencionalmente marcada pela presença forte do adjetivo indelével (= que não se pode apagar). Portanto, a sinestesia está aqui presente.
No entanto, não há dúvida de que a figura mais evidente nesse verso é a metáfora. Como representação da vida do sujeito poético (em resposta à pergunta retórica que introduz a segunda estrofe — «O que é a vida?»), em «Barco indelével pelo espaço da alma» o sujeito poético usa a arte de não recorrer à comparação, optando pelo processo pelo qual, aproximando duas palavras, se opera uma deslocação de uma para outra através de um termo intermédio subentendido […], havendo uma deslocação de sentido através do termo intermédio subentendido» (João David Pinto Correia, «A Expressividade na Fala e na Escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, p. 502).
Não nos parece haver hipálage — figura de pensamento e figura de alteração semântica, que «consiste na atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionado. Transposto na frase, o adjectivo aparece muito frequentemente nesta construção, ligando ao objecto uma característica moral pertencente ao sujeito. […] (E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia).