Os dicionários consultados são unânimes: salsa provirá do latim salsa (herba), «erva salgada». Ora, o adjetivo salsa, em latim, é a forma feminina de salsus («salgado»), particípio do verbo sallo («salgar»), que deriva de sal («sal»). A relação etimológica entre salsa e sal parece, pois, inegável. O que já não parece tão óbvio é a razão de ser de tal derivação, ou seja, não se percebe muito bem o que terá a salsa que ver com o cloreto de sódio...
É sabido que a salsa tem um sabor forte, mas poderá este classificar-se como salgado, em vez de simplesmente picante? A verdade é que, em latim, existiam termos específicos (por exemplo, acer e mordax) para exprimir o sabor picante. Neste dicionário, sugere-se que, por extensão de sentido, «salgado» seria «o que dá gosto à comida». Já neste ensaio, intitulado Da metáfora funcional e algumas implicações, da autoria do linguista brasileiro Celso Ferrarezi Júnior e publicado pela Editora Universidade Federal de Rondônia (Edufro) em 2003, se sugere que o sentido de herba salsa «pode ser reconstruído como “erva salgada” ou “erva de cozinhar comida salgada”» (p. 8)...
A verdade é que não encontro em nenhum dicionário, nem naqueles que abarcam a latinidade medieval, nenhuma referência a herba salsa ou salsa herba. O que encontro, na página 286 do sétimo volume do Glossarium mediæ et infimæ latinitatis, da autoria do filólogo francês Charles du Fresne (1610-1688), mais conhecido por Du Cange, é este curioso poema medieval:
Salvia, serpillum, piper, allia, sal, petrosillum,
His bona fit salsa, vel fit sententia falsa.
«Sálvia, serpão, pimenta, alhos, sal, salsa,
Com isto se faz um bom molho, ou se faz uma frase falsa».
Este poema apresenta, no mínimo, duas singularidades. Em primeiro lugar, as duas rimas internas (serpillum/petrosillum e salsa/falsa), que infelizmente não consegui reproduzir na tradução. Em segundo, o despontar de um novo termo (salsa), desconhecido do latim clássico e resultante do uso nominal da forma feminina do adjetivo salsus («salgado»), para designar qualquer tipo de molho. Este termo passaria diretamente para o francês sauce e para o italiano e castelhano salsa, e destas línguas, por vezes por via do inglês sauce, espalhar-se-ia pelo mundo inteiro, encontrando-se atualmente na maior parte das línguas indo-europeias e até em muitos idiomas de outras famílias, como o árabe صَلْصَة (ṣalṣa), o arménio սոուս (sous), o basco saltsa, o húngaro szósz, o indonésio saus, o japonês ソース (sōsu), o coreano 소스 (soseu), o maltês zalza, o turco salça, entre muitos outros. Um verdadeiro sucesso planetário, que não chegou a Portugal...
Encontrei outra versão deste poema na célebre obra Regimen sanitatis Salernitanum («Regime de saúde salernitano»), também conhecida por Flos medicinae («Flor da medicina»), editada por volta do ano 1050 e, de acordo com a tradição, da autoria dos professores da Schola Medica Salernitana («Escola Médica de Salerno»). Trata-se de uma obra escrita em versos hexâmeros, que reza assim no capítulo XXI:
De bona salsa
Salvia, sal, vinum, piper, allia, petroselinum,
Ex his fit salsa, nisi sit commixtio falsa.
«O bom molho
Sálvia, sal, vinho, pimenta, alhos, salsa,
Com isto se faz um molho, a não ser que a mistura seja falsa.»
Novamente as rimas internas (vinum/petroselinum, salsa/falsa) e o já referido termo salsa para designar qualquer tipo de molho. Existem outras variantes1, o que aponta para grande popularidade do poema, provavelmente transmitido por via oral numa fase inicial.
A persistência da nossa salsa nesta célebre receita de molho leva-me a conjeturar se, em latim medieval, no território que mais tarde daria origem a Portugal, esta erva teria passado a ser conhecida por salsa devido à sua utilização na confeção do célebre molho, e não ao seu sabor pretensamente salgado. Não conheço, porém, qualquer documento que sustente esta conjetura. Seja como for, mesmo que tivesse sido esta a via de transmissão do termo, a relação etimológica com sal manter-se-ia, pois o vocábulo medieval salsa («molho») radica no latim sal («sal»).
Importa salientar, a talho de foice, que o termo latino para a nossa salsa era petroselinum ou petroselinon, com as variantes medievais petrosillum e petrisellum, a primeira das quais aparece na primeira versão do poema anteriormente referida. É de petroselinum que, por via direta ou indireta, derivam os vocábulos que, em muitas línguas europeias, designam esta planta aromática (por exemplo, inglês parsley, francês persil, alemão Petersilie, italiano prezzemolo, espanhol perejil). Este vocábulo petroselinum, aliás, também deixou rasto em português, embora por via do provençal antigo, dando origem a perrexil. Parece haver discordância quanto ao significado atual deste vocábulo. Este artigo da Wikipédia, por exemplo, dá-o como sinónimo de salsa. Já o dicionário digital Priberam considera que designa outra planta, também conhecida por perrexil-do-mar ou funcho-marítimo, embora também admita o significado de «salsa». O Aulete digital entende que designa apenas a planta referida anteriormente (Crithmum maritimum), «também chamada bacila, critmo, critmo-bastardo, funcho-do-mar, funcho-marinho, funcho-marítimo e perrexil-do-mar». O Grande Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora (2004, p. 1186), por seu lado, decreta que perrexil significa apenas «aperitivo», referindo a planta anterior no verbete perrexil-do-mar, onde se pode ler que também é conhecida por funcho-marítimo. Consultando um dicionário mais antigo, mais concretamente, o célebre Vocabulario Portuguez e Latino (1712-1721), da autoria do padre Rafael Bluteau (1638-1734), verificamos, no sexto tomo (1720), nas páginas 444-445, que a perrexil não é atribuído o significado de «salsa», e que até se faz a seguinte advertência: «Perrexil tem analogia com Persil, mas he muito differente, porque Persil em lingua Franceza he salsa». Já em galaico-português, de acordo com Dicionario de dicionarios do galego medieval – Corpus lexicográfico medieval da lingua galega (Instituto da Língua Galega), que neste ponto se baseia nos comentários do reputado filólogo Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989) à obra Cantigas d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses, perrexil parece ter o significado de «salsa» ou «cor de salsa».
Resumindo, a relação etimológica entre sal e salsa é indubitável, mas a via que levou à formação do segundo vocábulo continua, a meu ver, algo nebulosa e precisa de mais investigação...
1 Por exemplo, numa edição bilingue (em latim e francês), publicada em Paris em 1753, traduzida por um enigmático Mr. B. L. M. e intitulada L’art de conserver sa santé, composé par L’École de Salerne. Traduction nouvelle en vers françois, lê-se His bona fit salsa («Com isto se faz um bom molho») no início do segundo verso (p. 35).