O substantivo cor – com ó aberto – é efetivamente um sinónimo de coração, com a particularidade de apenas ocorrer na locução «de cor», que significa «saber de memória». Este uso limitado de cor tem uma razão histórica que não parece completamente esclarecida.
A pergunta no fundo é a seguinte: porque se diz hoje coração, para denotar e referir o «órgão muscular oco, na cavidade torácica, que recebe o sangue das veias e o impulsiona para dentro das artérias», e só se usa cor em «de cor», como em «saber de cor» e «falar de cor»? No Ciberdúvidas, há várias respostas (ver Textos Relacionados) a respeito da locução «de cor» ("cór") e até informação sobre a etimologia deste homógrafo de cor ("côr"). Contudo, importa apontar de modo breve algumas pistas para o melhor enquadramento histórico quer de cor quer da forma correspondente, coração, que é a palavra comummente empregada.
Assim, encontra informação muito sumária no dicionário da Porto Editora e no Priberam. O Dicionário Houaiss também indica que cor é arcaísmo, em lugar de coração, mas pouco mais adianta. A consulta do Vocabulário Portuguez e Latino (publicado em 1712), elaborado em época anterior ao aparecimento da lexicografia contemporânea e dos seus critérios científicos, indica que, nos começos do século XVIII, a situação era igual à de hoje: cor só figura na locução «de cor».
Nesta discussão, convém lembrar que, noutras línguas europeias, a ideia de «saber de memória» é expressa por locuções formadas com a palavra equivalente a coração e a cor. É o caso do francês savoir par coeur («saber de cor, conhecer muito bem») ou do inglês to know by heart (idem); atente-se, porém, que, nestas línguas, a palavra que designa o órgão (respetivamente, coeur e heart) é a mesma que as expressões apresentadas incluem, em contraste com o português, língua em que cor ("cór") chega mesmo a perder a conexão com coração na perspetiva dos falantes menos informados da história das palavras do português.
Observe-se ainda que cor vem do latim cor, cordis, tal como o francês coeur, o catalão cor e o italiano cuore. Porque será, então, que hoje, em português se diz coração e, em espanhol, corazón? Estas formas estão documentadas desde a Idade Média, e parece terem tido sempre prevalecido sobre cor (em espanhol, documentado, como cuer). O Dicionário Houaiss anota que coração tem relação com cor, mas inclui também a terminação -ação, que talvez «se associe a um sufixo aumentativo de reforço».
Acrescente-se que, nos estudos filológicos e linguísticos, há quem considere que cor é uma palavra que o galego-português importou do provençal (também conhecido como occitano; cf. o catalão cor), no contexto da poderosa influência do sul da França na cultura medieval peninsular (cf. Manuel Ferreiro, Gramática Histórica Galega. Lexicoloxía II. Santiago de Compostela, Edicións Laiovento, 2001, pág. 316). Contudo, sabe-se que, no castelhano, a forma corazón coexistiu com a forma cuer, que não será um provençalismo e é cognata de cor e dos outros cognatos já mencionados. Sendo assim, não se afigura implausível que também em Portugal e na Galiza cor seja forma indígena, cujo uso, por razões ainda por esclarecer, acabou por ficar confinado à locução adverbial «de cor» (= «de memória»).
* N.E. – «Saber de cor» significa «saber bem, recorrendo à memória». O termo – como regista Sérgio Luís de Carvalho, no livro Nas Bocas do Mundo –Uma Viagem pelas Histórias das Expressões Portuguesas – «vem da palavra latina cor, que significa "coração" e "conhecimento". Ainda hoje, em francês, se diz saber 'par coeur' ("saber de coração"). No fundo, "saber algo de cor" é saber algo de forma profunda, quase intuitiva, como se viesse do coração. Mas atenção, que mesmo tendo origem origem latina este termo chegou até nós como galicismo.»
Cf. Cor e de cor