1. A barbárie...
De acordo com o Dictionnaire Grec Français de A. Bailly (27.ª edição, Paris, Hachette, 2000, p. 347-348), o adjetivo βάρβαρος (bárbaros) tinha primariamente a aceção de «estrangeiro», ou seja, «que não é grego», ou melhor, «que não é helénico». Por extensão de sentido, referia-se igualmente a tudo o que se assemelhasse às línguas e aos costumes dos povos estrangeiros, ou seja, não helénicos. Neste campo semântico mais alargado, denotava os erros cometidos contra o bom uso da língua helénica e, como os gregos estranhavam os costumes dos povos estrangeiros, adquiriu igualmente a aceção de «grosseiro», «incivilizado», e mesmo «cruel».
Em latim, apesar de a aceção de «estrangeiro» estar representada, entre outros, pelo adjetivo peregrinus, que era bastante frequente, o vocábulo grego pegou de estaca, e barbarus, de acordo com o Dictionnaire Latin-Français de Félix Gaffiot (Paris, Hachette, 2000, p. 209), passou a designar tudo o que não fosse romano ou grego e, por extensão de sentido, tal como na língua de origem, adquiriu igualmente o significado de «inculto», «selvagem», encontrando-se todas estas aceções na obra de Cícero (106-43 a. C.). Nos escritos de certos autores cristãos, significava também «pagão».
A aceção de «estrangeiro», na linguagem corrente, perdeu-se em português, subsistindo apenas no vocábulo barbarismo, quando este se refere a um estrangeirismo reprovado pelos puristas, embora haja barbarismos que não são estrangeirismos. Importa realçar que Isidoro de Sevilha (c. 560-636), nas suas Etymologiae (I, 29-32), faz uma clara destrinça entre, por um lado, barbara nomina («estrangeirismos»), ou seja, os vocábulos que são incognita Latinis et Graecis («desconhecidos dos romanos e dos gregos) e, por outro, barbarismus e barbarolexis. Do barbarismo, primeiro diz que se trata de «um vocábulo que enferma de um erro de escrita ou de pronúncia» (verbum corrupta littera vel sono enuntiatum), acrescentando que o termo se aplica caso «a corruptela se dê numa palavra latina» (in verbo latino fit, dum corrumpitur), ao passo que o barbarolexis, pura e simplesmente, se refere ao recurso a estrangeirismos quando se fala latim (quando autem barbara verba latinis eloquiis inferuntur).
Curiosamente, apesar da sua vincada veia etimológica, Isidoro de Sevilha não faz qualquer alusão, na sua obra, à etimologia de barbarus. No entanto, ao que tudo indica, de acordo com as consultas que efetuei, existe unanimidade entre os etimologistas atuais no sentido de atribuir origem onomatopaica a βάρβαρος, como alude o nosso consulente. O vocábulo ter-se-ia formado de forma jocosa, devido ao facto de, aos ouvidos dos gregos, qualquer língua que não fosse a sua lhes parecer um balbuciar ininteligível, ao que eu acrescentaria uma segunda hipótese, que não colide com a anterior: a onomatopeia, igualmente chocarreira, serviria para mimetizar o gaguejar dos estrangeiros a tentarem falar grego... Seja como for, o vocábulo até poderá ser mais antigo, pois o erudito britânico Monier Monier-Williams (1819-1899), especialista em línguas asiáticas, sobretudo sânscrito, persa e hindustâni, refere, no seu dicionário de sânscrito (1) que continua a ser uma referência incontornável, a existência do adjetivo बर्बर (barbara), que traduz como stammering («gago»).
Para encerrar este capítulo “barbárico”, refira-se que a generalidade dos tradutores continua a optar por traduzir βαρβάροις (barbárois) por «a bárbaros» na Epístola aos Romanos (1:14), unanimemente atribuída a Paulo de Tarso. É o caso das duas traduções seguintes:
«A gregos e a bárbaros, a sábios e a ignorantes, eu sou devedor» (A Bíblia Sagrada, Edições Paulinas, 1978, p. 1466).
«Tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes, eu sou devedor» (Bíblia dos Capuchinhos, Difusora Bíblica, 2003, p. 1837)
Nos moldes atuais, do “politicamente correto”, talvez fosse mais curial traduzir por «a estrangeiros»...
2. A bravura...
Quando analisamos o campo semântico de bravo, importa não esquecer que este vocábulo existe igualmente noutras línguas indo-europeias, não só românicas, mas também germânicas e eslavas, e até célticas, com campos semânticos nem sempre coincidentes.
alemão brav: «excelente», «honesto», «bom, bem-comportado»
bretão brav: «bonito»
castelhano bravo: «corajoso», «excelente», «feroz»
catalão brau (feminino brava): «valente, batalhador», «excelente», «feroz, selvagem»
francês brave: «corajoso», «bom, generoso»
inglês brave: «corajoso»
italiano bravo: «bom, bem comportado», «capaz, habilidoso», «obediente»
romeno brav: «corajoso»
russo бравый (brávyj): «ousado, arrojado»
Qual a origem remota de todas estas formas? Não existe unanimidade entre os etimologistas. Por exemplo, no que se refere ao nosso vocábulo bravo, o próprio Dicionário Eletrônico Houaiss não aponta apenas a etimologia referida pelo nosso consulente:
«lat.vulg. *brabus < lat. barbărus < gr. bárbaros ‘estrangeiro, não grego, bárbaro, grosseiro, não civilizado’ e, por infl. italiana, acp. interjectiva ‘viva! muito bem!’;»
Na verdade, o lexicógrafo brasileiro refere igualmente uma etimologia alternativa:
«lembre-se que, em vez de *brabus, há quem postule lat. pravus,a,um ‘torto, mau, perverso’ como orig. de bra(v/b)o (Serafim da Silva Neto, Hist. 205, n. 6);»
No entanto, a linha etimológica bravo < lat. barbărus < gr. bárbaros (com ou sem interferência da forma hipotética *brabus) parece ser a preferida dos lexicógrafos portugueses. Eis alguns exemplos:
1) José Pedro Machado (1914–2005), no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, (1.º vol., 4.ª edição, Livros Horizonte, 1987) remete bravo (p. 462) para bárbaro (p. 390-391), da qual deriva a primeira, «por via popular», «através de uma forma *brabus < *brabu‑ < barbaru‑», datando-a de 1124.
2) No Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, da autoria de Antônio Geraldo da Cunha (2.ª ed., 2001, Rio de Janeiro, p. 122-123), lemos o seguinte: «Do lat. barbarus. Na segunda acepção [trata-se da interjeição bravo!], é de imediata procedência italiana.»
3) O Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Porto Editora, 2004, p. 240) propõe: «Do latim barbăru‑, “bárbaro; feroz; selvagem; valente”».
4) No dicionário digital Priberam, podemos ler: «latim vulgar *brabus, do latim barbarus, ‑a, ‑um, bárbaro, estrangeiro, inculto, selvagem».
Nenhuma destas fontes avança com qualquer tentativa de explicação da evolução semântica que teria conduzido da barbárie à bravura, ou seja, nenhuma delas responde diretamente à dúvida do nosso consulente. O único palpite, embora tímido, que se me deparou foi no Etimologia Vortaro de Esperanto («Dicionário Etimológico de Esperanto»), da autoria do filólogo sueco Ebbe Vilborg (n. 1926), o qual, no volume 1 (Eldona Societo Esperanto, Malmö, 1989, p. 65), ao tratar da etimologia de brava («valente», «capaz, competente», «honesta»), diz o seguinte: semantika evoluo: > “batalema” > “brava” («evolução semântica: > “belicoso” > “bravo”»). Por outras palavras, a noção de coragem derivaria do caráter belicoso das gentes bárbaras, ou seja, dos exércitos estrangeiros, e da intrepidez com que lutavam. Ficam por explicar as noções de habilidade, competência, excelência, obediência e honestidade que este vocábulo apresenta nas várias línguas referidas, mas a perícia com que lutavam esses guerreiros e a sua submissão aos chefes talvez permitam entender o complexo desvio semântico operado ao longo dos tempos...
No entanto, há vozes discordantes no que diz respeito à linha etimológica que liga o vocábulo clássico barbarus à forma medieval *brabus ou *bravus, que, aliás, não está atestada. Uma delas é a do linguista e etimologista Anatoly Liberman (Анатолий Симонович Либерман), nascido em 1937 em São Petersburgo mas radicado nos Estados Unidos desde 1975, professor no departamento de alemão, línguas escandinavas e holandês da Universidade de Minnesota e autor de An Analytic Dictionary of English Etymology, «Dicionário Etimológico Analítico da Língua Inglesa» (2008), uma obra de referência, precedida de Word Origins... and How We Know Them: Etymology for Everyone, «Origens das Palavras... e Como as Conhecemos: Etimologia para Todos» (2005), de caráter mais popular. Num texto publicado em linha em novembro de 2013, intitulado The “brave” old etymology («A velha e “brava” etimologia»), Liberman mostra-se cauteloso em relação a esta etimologia realçando que o principal óbice à linha etimológica que liga o inglês brave a barbarus é de ordem fonética: «Barbarus teria de dar origem a brabarus por metátese (troca de ar por ra) e de perder material no meio ou dar outras cambalhotas para chegar à forma bravus (a transformação de b em v após uma vogal é normal, lautgesetzlich, para usar um termo alemão). Por esse motivo, houve muitos investigadores que rejeitaram esta etimologia, embora haja registo frequente de alterações semelhantes».
Este reparo do etimologista sobre as «cambalhotas» que terá sofrido o vocábulo latino fez-me lembrar o nosso ruibarbo, cujo nome provém do latim rheu barbărum. Neste caso, o nosso conhecido adjetivo barbărum («estrangeiro»), forma neutra de barbărus, sofreu uma transformação diferente, sem a tal metátese: barbaru- > barbo. Ficou com outras feições, mas está mais próximo do étimo do que bravo...
Seguidamente, Liberman enumera algumas outras hipóteses etimológicas que colheu nas suas investigações, embora, como afirma, a bibliografia referente à evolução etimológica que conduziu a *brabus ou *bravus seja escassa («os dicionários e cerca de uma dúzia de artigos»). Realça sobretudo a hipótese pravus (já apontada por Houaiss), mas não toma partido pela mesma fazendo-lhe igualmente objeções de índole fonética. Termina o artigo com certo humor afirmando que, «no estado atual da questão, é preciso ser-se um homem bravo (ou uma mulher brava) para ter uma opinião formada sobre a origem de bravo. Infelizmente, eu sou tímido». Aliás, todo o artigo merece leitura, pela forma despretensiosa mas certeira como aborda o labor etimológico e o modo como se propagam certas etimologias...
1 A Sanskrit-English Dictionary: Etymologically and Philologically Arranged with Special Reference to Cognate Indo-European languages, Monier Monier-Williams, revised by E. Leumann, C. Cappeller, et al. 1899, Clarendon Press, Oxford. Esta obra teve várias reedições e está atualmente acessível em linha.