Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

As palavras porta-chaves, porta-aviões e porta-bagagens pertencem à família de palavras de porta?

Resposta:

Por família de palavras entendemos o «conjunto das palavras formadas por derivação ou composição a partir de um radical comum» (Dicionário Terminológico). Dada esta definição, poderíamos assumir que as palavras compostas apresentadas – porta-chaves, porta-aviões e porta-bagagens – são da família de palavras de porta.

No entanto, não podemos afirmar que o são diretamente, porque a forma porta que compõe estas palavras vem do verbo portar («ter consigo algo enquanto se movimenta, levar; carregar, transportar»), e não do nome porta, o que leva a supor que não se trata de palavras com o mesmo estatuto que porteiro, portaria, portão, portela ou porta à porta, estas, sim, claramente da mesma família que porta. Não obstante, também não podemos descurar que o verbo portar e o substantivo porta contêm o mesmo radical, port-, o que nos leva a concluir que as palavras compostas apresentadas são casos marginais, relacionados indiretamente à família de palavras de porta. 

Pergunta:

Bom dia! A minha dúvida prende-se com a utilização e interpretação, por exemplo, numa mesma encomenda, da palavra calças e par de calças. Como interpretar a expressão "par de calças" num contexto em que a pessoa, por exemplo, se refere a "calças" para indicar o modelo, mas ao efetuar a encomenda refere que pretende comprar "três pares de calças"? Devemos sempre assumir que neste tipo de situações (por exemplo, par de óculos) "um par" é apenas uma unidade, e por isso sinónimo de "calças", ou a interpretação matemática de "par" também pode ser aplicada corretamente (nesse caso, um "par de calças" poderá significar duas calças)? Quando num mesmo contexto se usa a mesma terminologia, a questão será fácil de interpretar mas, e quando no mesmo contexto surgem as duas terminologias?

Obrigada!

Resposta:

A palavra calças1 tem forma plural2, mesmo quando falamos de um elemento singular. Isto prende-se com o facto de se falar de uma peça de vestuário que abriga duas pernas, a que corresponde, portanto, o plural. À semelhança desta situação, temos óculos, nome sempre plural, mesmo que falemos de um só objeto.

Ora, quando queremos referir-nos a esta peça de vestuário, mesmo que seja um único objeto, temos duas opções: calças ou par de calças. A questão da consulente prende-se com a ambiguidade desta denominação: por par entendemos geralmente dois objetos, em vez de só um. Acontece que, mesmo redundante, par de calças é sinónimo de calças, ou seja, agrega-se o substantivo par a um tipo de nomes que denota coisas com formato duplo, sem isso querer indicar duas unidades desse objeto. Assim, quantificando a palavra par, verifica-se que «um par de calças» corresponde a uma unidade da peça de vestuário chamada calças, tal como «um par de óculos» equivale a um único objeto designado por óculos.

1 Observe-se que, relativamente à etimologia do substantivo calças, chegou ela até nós através do «latim vulgar calcea, derivado de calcĕus,i “calçado, sapato”. Antes significava “meia”, pois os romanos, que não usavam nem meias nem calças, aprenderam com os germanos, que habitavam um clima frio, o uso dessas peças de vestuário e as designaram com a palavra usada para sapato; com o passar dos tempos, as calças foram encompridando até cobrir o corpo, dos pés à cintura; no século XVI, as calças se dividiram em duas partes: a que cobria a barriga e as coxas manteve o mesmo nome...

Pergunta:

Gostaria de perguntar porque é que na seguinte frase: «Quando foram dizer a Hagrid que lhes abrisse a janela para poderem falar com ele», o verbo abrir vem no conjuntivo.

Sei que há mais construções de Quando + Verbo + Conjuntivo para além desta, como é o caso de: «Quando quiserem que vos diga o que sei, peçam!»

Mas também há outras construções similares em que isso não acontece, como é o caso de: «Quando disserem que não querem isso...» . No entanto, se mudarmos a frase um pouquinho, já vem no conjuntivo outra vez: «Quando disserem ao Francisco que vos abra a porta...»

Porquê estas diferenças?

Agradecia esclarecimento.

Resposta:

A primeira questão a esclarecer é que a seleção do modo não depende do verbo da conjunção quando, mas sim do significado subjacente aos verbos dizer e querer

Depois, em relação à seleção do modo verbal, vejam-se os exemplos dados pela consulente1:

(1) «Quando foram dizer a Hagrid que lhes abrisse a janela para poderem falar com ele, ela recusou.»

(2) «Quando quiserem que vos diga o que sei, peçam

(3) «Quando disserem ao Francisco que vos abra a porta, digam-lhe para não deixar fugir o gato.»

(4) «Quando disserem que não querem isso, lembrem-se que não vos será mais oferecido.»

Nas frases (1), (2) e (3)  os verbos dizerquerer estão associados a uma ordem ou um pedido, e, por isso, selecionam uma oração subordinada substantiva completiva cujo verbo se encontra no conjuntivo. Já em (4) o verbo dizer tem valor declarativo e, ao contrário de (1), (2) e (3), seleciona uma oração subordinada cujo verbo se encontra no indicativo. 

 

1 Para melhor en...

Iberofonia e pan-iberismo
Conceito e definição das línguas e culturas dos países ibéricos.

Depois de uma longa carreira profissional e de pesquisa, o académico espanhol Frigdiano Álvaro Durántez Prados publicou o livro Iberofonia e Pan-Iberismo. Definição e articulação do Mundo Ibérico, que se encontra agora disponível em formato PDF. 

Nesta obra o autor destaca a potencialidade das duas principais línguas ibéricas, espanhol e português estão na base do Espaço multinacional de países de línguas espanhola e portuguesa, o chamado "Espaço Pan-Ibérico" ou "Iberofonia", que corresponde em grande parte à soma da Comunidade Ibero-Americana das Nações e da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Gostaria de saber qual é o termo correto: «à tona de água» (como aparece na obra "A viúva e o papagaio") ou «à tona da água»?

Desde já agradeço a atenção.

Resposta:

O uso do artigo não depende da locução «à tona de». O uso do artigo está, sim, dependente do nome comum água. Celso Cunha e Lindley Cintra, na Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984), afirmam que «quando queremos indicar a noção expressa pelo substantivo de um modo geral, isto é, em plena extensão do seu significado» (p. 237) omite-se o artigo  por exemplo, «à tona de água». Por outro lado, quando queremos indicar a noção expressa por esse mesmo substantivo de um modo mais concreto, optamos pelo uso do artigo – caso de «à tona da água». 

Refira-se que tona, que significa «película mais ou menos fina, externa, que envolve certos corpos; pele, casca» (Dicionário Houaiss), ocorre no discurso sobretudo integrado na locução adverbial à tona («a verdade vem sempre à tona») ou na locução prepositiva à tona de («as folhas ficavam sempre à tona da água»).

 

CfQual é a origem da palavra «água»? + Viagem pelos nomes da água