Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2. Com pós-graduação em Edição de Texto, trabalha na área da revisão de texto. Exerce funções como leitora no ISCTE.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Como se deve grafar o termo «bem comum» ou «bem-comum»? Com ou sem hífen?

O dicionário Priberam inclui (talvez recentemente) uma entrada com o nome hifenizado («bem-comum»), advertindo que a definição da palavra estará disponível em breve.

Resposta:

A consulta dos vocabulários ortográficos atualizados – VOC, Infopédia, VOLP da Academia de Ciências de Lisboa e VOLP da Academia Brasileira de Letras – revela  que não há registos da grafia hifenizada "bem-comum". A forma correta desta expressão é portanto «bem comum», sem hífen. Aquilo que se encontra é a locução «bem comum», atestada, como subentrada de bem, como «conjunto das condições materiais e espirituais que proporcionam a uma comunidade humana um bem-estar favorável ao desenvolvimento harmonioso dos indivíduos que a compõem» (Infopédia). 

Também do dicionário Priberam se encontra a locução «bem comum» como subentrada de bem

Talvez o que justifique a entrada «bem-comum» no Priberam esteja relacionado com aquilo que reporta o Acordo Ortográfico de 1990 base XV, ponto 4: «Emprega-se o hífen nos compostos com os advérbios bem e mal, quando estes formam com o elemento que se lhes segue uma unidade sintagmática e semântica e tal elemento começa por vogal ou h. No entanto, o advérbio bem, ao contrário de mal, pode não se aglutinar com palavras ...

Pergunta:

Qual a forma correta: ritmação ou ritmização?

Resposta:

Ambos os substantivos – ritmação e ritmização – estão corretos e têm o mesmo significado: «ação de imprimir ritmo a, submeter a ritmo; cadenciar; marcar o ritmo; acompanhar». As suas diferentes terminações estão relacionadas com os verbo dos quais derivam: ritmação deriva de ritmar e ritmização deriva de ritmizar – verbos sinónimos.

Estes substantivos são formados por sufixação de -ção ao tema do verbo, formando assim um substantivo. A este sufixo é atríbuido o sentido de «ação ou resultado dela».

Pergunta:

É correto terminar uma frase com «lidar com»?

Exemplo: «Quanto à falta de pontualidade, tenho dificuldade em lidar com»

Na minha opinião a frase poderia ser «Quanto à falta de pontualidade, é algo com que tenho dificuldade em lidar» ou «Tenho dificuldade em lidar com a falta de pontualidade».

Fiz este reparo à minha filha que me respondeu que todos os amigos falam assim e que a frase está correta.

Resposta:

A construção «quanto à falta de pontualidade, tenho dificuldade em lidar com», com a frase a terminar numa preposição, é uma novidade que parece refletir uma situação de empréstimo sintático do inglês.

Em inglês é comum encontrar-se frases como «This exercise is too difficult to deal with», isto é, terminando em preposição – with. Trata-se de um fenómeno denominado «dangling/hanging/stranded preposition» – «preposição pendente» , que, apesar de começar a ter registo em português, na oralidade, não tem fundamentação nas gramáticas. Antes pelo contrário, na Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian lê-se que, com verbos com regência, em português, não é possível separar a preposição do núcleo desse complemento (pág. 2071).

Note-se ainda que este tipo de contruções é corrente em língua inglesa e ocorre em diversas situações, já em português percebe-se que o seu uso se dá somente quando a preposição em final de frase retoma informação da frase anterior. Veja-se os exemplos:

(1) «Trust me, I know what I‘m talking about.»

 Esta contrução, em inglês, com a preposição em final de fase (1) é um exemplo de que não ocorreria em português (2):

(2) «*Acredita em mim, eu sei que falo sobre.»

Como não há retoma de informação, a frase (2) é inaceitável, aceitável seria:

(3) «Confie em mim, eu sei sobre o/do que estou a falar.»

 

* assinala a inaceitabilidade da frase.

Pergunta:

É correto escrever: «Ela desabafou sobre suas mágoas»?

Resposta:

A frase «ela desabafou sobre as suas mágoas» é aceitável, atendendo a que «sobre as suas mágoas» é um adjunto adverbial (modificador do grupo verbal) referente ao motivo ou ao conteúdo da ação de desabafar.

Nas aceções de confidenciar1 e abrir-se2, o verbo desabafar pode ser transitivo direto e indireto, ocorrendo com a preposição com3

(1) «desabafou as preocupações com o pai» (transitivo direto e indireto). 

(2) «ele desabafa sempre com a irmã» (transitivo indireto);

(3) «consegui que ela desabafasse comigo» (transitivo indireto).

Os usos ilustrados em (2) e (3) não são incompatíveis com uma expressão que marque a motivação do ato de desabafar e que seja introduzida pela preposição sobre ou outra equivalente, incluindo locuções prepositivas (p. ex. «a respeito de»):

(4) «ele desabafa sempre com a irmã sobre os seus problemas.»

(5) «consegui que ela desabafasse comigo a respeito das suas mágoas».

Note-se que o substantivo desabafo tem ocorrência com a preposição sobre, e pode considerar-se que este é um dos casos em que a nominalização conserva as propriedades do verbo com que se relaciona. Veja-se um exemplo:

(6)  «Desde que se calara - quando, a seguir ao desabafo sobre a filha, alastrou, do Café para as casas mais distantes, aquela espécie de velhacaria com que, a um tempo, se exibia e se ocultava, como tesouro de avarento envaidecido, o corpinho tão pouco real de Natalina.» (

Pergunta:

Tenho vindo a notar que em muitas embalagens e placas informativas, principalmente no ramo da alimentação, têm vindo a usar muito o singular das palavras, como por exemplo: «tarte de noz.». Esta seria talvez, confecionada com mais do que apenas uma noz.

Qual seria o mais correto: «tarte de noz» ou tarte de nozes» ou «tarte com aroma a noz»? Porque temos uma outra situação relacionada com os sabores e aromas.

Normalmente dizemos: «bolo de laranja», «bolo de maçã», «bolo de banana», e por aí além, mas existe alguma regra no que diz respeito às quantidades, para definir se o nome é no singular ou no plural?

Obrigado.

Resposta:

Designar a tarte como «tarte de noz», com noz no singular, está correto, assim como está «bolo de laranja», «bolo de maçã», «bolo de banana», etc.

Noz, laranja, maçã, banana são nomes comuns contáveis, ou seja, pluralizáveis. No entanto, é possível usar nomes contáveis como não-contáveis, como acontece no caso de «bolo de noz», «bolo de laranja», «bolo de maçã», «bolo de banana».

De facto, fazendo parte da lista de ingredientes de uma receita, estes nomes comuns passam a pertencer à classe dos nomes não-contáveis, i.e., são «nomes comuns que se aplicam a conjuntos de objetos ou entidades em que não é possível distinguir partes singulares de partes plurais» (Dicionário Terminológico).

Vejam-se dois exemplos flagrantes: «sumo de laranja» e «puré de batata». Nunca se diz «quero um sumo de laranjas» e «o frango acompanha com puré de batatas». Contudo, sabe-se que, à partida, sumo em referência foi feito com mais do que uma laranja e o puré tem, inegavelmente, mais do que uma batata.