Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostava de agradecer o vosso trabalho. Tem sido muito esclarecedor para os seguidores do Ciberduvidas. Muito obrigada!

Deixo aqui uma frase de uma amiga que me gerou dúvidas: «... não sei se é para fazer a cirurgia às cataratas.» A minha dúvida está em «às cataratas». Eu diria das cataratas. Qual é a correta?

Obrigada pela vossa atenção e pelo vosso trabalho!

Resposta:

A frase correta e corrente é com a preposição a, i.e.: «Não sei se é para fazer a cirurgia às cataratas». 

Neste contexto, o verbo fazer pede a preposição a para introduzir o objetivo ou destino da ação:

(1) «Fazer às cataratas a cirurgia.»

Para compreender melhor, podemos substituir «fazer a cirurgia» por um verbo equivalente como operar. Veja-se:

(2) «Não sei se é para me operarem às cataratas.»

Esta construção afigura-se mais natural e reforça o uso correto da preposição a.

No entanto, não configura erro usar a expressão «cirurgia das cataratas», na qual a preposição de implicaria posse ou origem, ou seja, algo como «a cirurgia pertencente às cataratas». Aceitando que operação e cirurgia são sinónimos e que o segundo termo tem um funcionamento sintático ao primeiro, importa assinalar que uma consulta da secção histórica do Corpus do Português (Mark Davies) revela que, em textos do Brasil, operação tem frequentemente associada a preposição de, quando se faz referência ao órgão, a parte do corpo ou afeção sujeitos a operação: «cirurgia de coração», «cirurgia de próstata», «cirurgia de hérnia de disco», «cirurgia de catarata». Este uso parece ausente dos textos de Portugal (ibidem).

Entre <i>appetizers</i> e <i>awareness</i>
Um banquete de anglicismos

Quando o português não parece suficiente, recorremos ao inglês para um appetizer ou talvez um pouco de awareness. Afinal, porque não usamos a nossa língua quando tal é possível? 

 

 

 

Pergunta:

Normalmente o verbo perguntar pede um complemento indireto. Por esta razão, perguntava se o verbo em causa pode reger a preposição destacada para: «O pai perguntou para aonde o filho ia.»

Cumprimentos

Resposta:

A sequência "para aonde" não está correta. Com perguntar, as formas corretas são «para onde» ou, simplesmente, aonde.

Quando perguntar é usado com construções interrogativas indiretas que envolvem o advérbio onde e fazem referência a uma deslocação com afastamento, há duas possibilidades:

 (1) «O pai perguntou para onde o filho ia.»

(2) «O pai perguntou aonde o filho ia.»

Note-se que, em (2), o advérbio aonde é resultado da contração da preposição a com o advérbio interrogativo onde, indicando movimento em direção a um lugar (cf. Dicionário Houaiss). Neste caso, o verbo perguntar é compatível com o uso de aonde, sem necessidade do uso de outras preposições.

Mesmo assim, não podemos ignorar que, de facto, em contextos informais é comum ouvir frases como «O pai perguntou para aonde o filho ia», em lugar de «para onde o filho ia». Apesar de, na oralidade, ser corrente trocar onde por aonde, trata-se de uso inaceitável à luz da norma.

Pergunta:

Gostaria de saber como devemos grafar: «O trabalho está bem-feito» ou «O trabalho está bem feito»?

Muito obrigada, desde já!

Resposta:

A grafia correta de bem-feito ou «bem feito» depende do contexto gramatical e semântico em que a expressão é utilizada, assim como do sentido que se deseja transmitir. Ambas as formas têm usos distintos e atendem a diferentes funções na língua portuguesa.

A forma bem-feito, com hífen, é empregada quando funciona como um adjetivo composto. Nesse caso, trata-se de uma unidade lexical que qualifica diretamente um substantivo, indicando que algo foi realizado de maneira correta, perfeita (Infopédia). Por exemplo:

(1)«O trabalho está bem-feito.»

Em (1) a expressão adjetiva bem-feito descreve o substantivo trabalho, atribuindo-lhe uma qualidade diretamente relacionada à ideia de esmero e perfeição.

Já «bem feito», sem hífen, ocorre quando bem é um advérbio que modifica o particípio feito. Neste caso, a relação entre as palavras não forma uma unidade lexical fixa. Por exemplo:

(2) «O trabalho foi bem feito.»

Neste caso, em (2), bem qualifica feito dentro de uma construção verbal, sem que as palavras formem um adjetivo composto.

É importante notar que em frases como a (2), temos uma passiva estativa, uma construção que reflete o estado ou a condição de algo que foi realizado, sem se preocupar com o agente. A passiva estativa pressupõe uma forma passiva verbal como «foi bem feito (por alguém)», cujos equivalentes na voz ativa seriam «alguém fez bem (alguma coisa)». Portanto, ao dizer-se «está bem feito», o foco está no estado do trabalho, que foi realizado de forma satisfatória, sem especificar quem o fez...

Pergunta:

Na frase «Lembrou-se do conselho e curtiu consigo a sua dor», há pleonasmo na expressão «curtiu consigo»?

Muito obrigada!

Resposta:

Na frase «Lembrou-se do conselho e curtiu consigo a sua dor», retirada do conto Os Três Conselhos de Teófilo Braga, há, de facto, um pleonasmo na expressão «curtiu consigo».

O verbo curtir, no seu uso tradicional e figurado, já sugere uma vivência pessoal e introspetiva da experiência, ou seja, a ideia de sentir ou processar algo profundamente. Aqui, curtir significa «suportar, sofrendo, situações penosas, dores ou sensações desagradáveis» (Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa). Já o pronome consigo reforça essa ideia, pois indica que a ação recai sobre o próprio sujeito, o que torna a expressão redundante, já que o verbo curtir já carrega essa noção de experiência íntima e pessoal.

No entanto, essa redundância não é um erro, mas sim uma escolha estilística do autor, que pode ter utilizado o pleonasmo para intensificar a reflexão interna e emocional da personagem. No conto, ao lembrar-se do conselho, o protagonista vê-se diante de uma situação de grande tensão emocional, e o uso de «curtiu consigo» serve para enfatizar que ele está a processar a dor de maneira intensa e silenciosa. Assim, apesar de ser pleonástico, o recurso estilístico do autor contribui para o impacto profundo do momento, sublinhando a introspeção da personagem e a sua luta interior diante de uma situação complexa.