Pedro Mateus - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Pedro Mateus
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Pedro Mateus, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa; mestrado em Literaturas Românicas, na área de especialização Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea pela mesma Faculdade.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber o que é mais correto: «Elas são duas pessoas de feitios diferentes», ou «Elas são duas pessoas de feitio diferente»?

Resposta:

Julgo que as duas formulações propostas pelo estimado consulente serão aceitáveis, isto é, nos dois enunciados parece ficar claro que:

1) existem duas pessoas;

2) cada uma das pessoas referidas tem um feitio próprio e claramente distinto.

Assim, teremos:

1) «Elas são duas pessoas de [= com dois] feitios diferentes»;

2) «Elas são duas pessoas de feitio [= cada uma delas com um feitio] diferente.»

Pergunta:

Falando de uma formulação farmacêutica, que tem mel na sua composição, qual a forma mais correcta?

– «Devido ao seu conteúdo em mel...»

– «Devido ao seu conteúdo de mel...»

Resposta:

Tendo em conta que, muito provavelmente, o mel não será o único elemento que fará parte da referida formulação farmacêutica, eu proporia um enunciado ligeiramente diferente dos dois que o prezado consulente sugere, isto é, por exemplo, «Devido ao facto de existir mel no seu conteúdo...», ou, de forma talvez um pouco mais formal, «Devido ao facto de se verificar a existência de mel no seu conteúdo...».

Pergunta:

Num manual atualizado do 11.º ano, a palavra aeronaval vem classificada, do ponto de vista da sua formação, como um composto morfossintático. Contudo, a primeira forma de base que a constitui apresenta-se não como uma palavra autónoma, mas, sim, como um radical.

Creio, pois, tratar-se de um equívoco, devendo o termo em referência ser classificado como composto morfológico.

Resposta:

Tem toda a razão a prezada consulente.

De facto, de acordo, por exemplo, com Mateus e outros, Gramática da Língua Portuguesa, p. 971, a composição morfológica «concatena radicais segundo os princípios da formação morfológica de palavras [ex.: herbívoro, biblioteca, luso-brasileiro] [...], e a composição morfossintática [...] é um processo híbrido de formação de palavras, no qual se conjugam propriedades das estruturas sintáticas e propriedades das estruturas morfológicas [ex: papa-formigas, guarda-joias, surdo-mudo]».

De forma talvez mais clara e simplificada, o Dicionário Terminológico confirma a perspetiva defendida pela consulente. Segundo o referido instrumento linguístico, a composição morfológica é um «processo de composição que associa um radical a outro(s) radical(is) ou a uma ou mais palavras. De um modo geral, entre os radicais ou o radical e a palavra associada ocorre uma vogal de ligação, ex.: [agr] + i + [cultura] = [agricultura], [psic] + o + [pata]», e a composição morfossintática é um «processo de composição que associa duas ou mais palavras. A estrutura destes compostos depende da relação sintática e semântica entre os seus membros, o que tem consequências para a forma como são flexionados em número, ex.: [surdo-mudo], [guarda-chuva] ou [via láctea].

Deste modo, o vocábulo aeronaval deverá, efetivamente, ser considerado um composto morfológico, tal como sugere a consulente.

Pergunta:

O que é o campo do enunciado?

Resposta:

A questão apresentada pela estimada consulente é algo vaga, carecendo de um maior grau de contextualização, para que a resposta pudesse também ser mais clara, sólida e sintonizada com a dúvida essencial.

O E-Dicionário de Termos Literários, coordenado pelo professor Carlos Ceia, por exemplo, regista as entradas «campo associativo» ou «conceitual», «campo lexical», «campo semântico» e «campo literário», não fazendo, porém, qualquer referência à expressão «campo do enunciado». No entanto, na citada entrada dedicada à definição de «campo literário», da autoria do professor Roberto Acízelo de Souza, são tecidas considerações sobre o conceito «campo», que me parecem de extrema pertinência para o desenvolvimento da presente análise. Segundo o referido docente, «somente a física emprega a palavra campo como termo técnico especializado, isto é, sujeito a definição rigorosa e por isso veículo de um conceito [...] fora da física, porém, campo constitui apenas uma metáfora mais ou menos evidente». Sendo assim, por exemplo, «um "campo de estudos" não coincide com uma disciplina, dando margem [...] à constituição de diversas. Assim, pode‑se admitir que a expressão "campo literário" seja útil para designar um conjunto de dados estabelecido mediante observação de certos fenômenos da linguagem e suas implicações adjacentes. Esse campo tem sido recortado por diversas disciplinas, cada qual constituindo um objeto próprio a partir de seus específicos interesses e aparato conceitual, a saber: retórica [...]; poética [...]; estética [...]; história da literatura [...] e teoria da literatura».

Seguindo esta linha de raciocínio, a noção de «campo lexical» s...

Pergunta:

«Será que você vai viajar?» Aqui podemos dizer que é verbo ser?

Mas é possível «Serás que tu vais viajar?»? O uso do serás para concordar com tu estaria certo?

Resposta:

João Malaca Casteleiro, Américo Meira e José Pascoal (Nível limiar: para o ensino, aprendizagem do português como língua segunda, Conseil de l´Europe, Strasbourg, Division des publications et des documents, 1988) referem que as interrogativas totais (tipo de interrogativa que «apresenta em geral uma estrutura semelhante à das frases declarativas, distinguindo-se, na oralidade, por uma entoação ascendente na parte final e, na escrita, pelo ponto de interrogação» (p. 409) «podem ser realizadas com forte entoação dubitativa. Neste caso [...] introduz-se a forma verbal será com o subordinador que: será que o Pedro vai ao Porto no sábado? Será que o comboio chega à hora?». Notam ainda os referidos autores que «a posposição do sujeito relativamente ao verbo, nas interrogativas totais, ocorre também em frases fortemente dubitativas, em que a forma verbal se encontra no futuro, simples ou composto: será a Ana capaz de vencer essas dificuldades? Terá o Pedro chegado a horas?» (p. 410).

Deste modo, e respondendo diretamente à questão apresentada pela consulente, não, não é possível estabelecer a concordância, no contexto enunciado, entre o sujeito e a forma verbal será, pois a construção fixa «será que» é usada, na língua portuguesa, como referem os investigadores citados, com o único objetivo de acentuar o efeito de dúvida que o enunciador pretende incutir na pergunta feita. A língua francesa, por exemplo, dispõe da partícula «est-ce que», que produz um resultado dubitativo muito semelhante ao do nosso «será que». Além do mais, repare-se que, no exemplo transcrito pela consulente, o acordo é estabelecido entre o sujeito tu e o verbo ir («vais»), sendo que o constituinte «será que» funciona como uma espécie de ele...