Nuno Carvalho - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Nuno Carvalho
Nuno Carvalho
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Investigador do ILTEC; foi leitor de Português na Universidade de Oxford (2001-2003).

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sou um fervoroso adepto do bom português, o que cada vez vai sendo mais difícil.

Ao ler recentemente uma entrevista, ouvi a palavra "pilharoca" como se da camada inferior da pele do porco se tratasse.

Como não encontro em nenhum dicionário essa palavra, agradeço me esclareçam, por favor.

Resposta:

Não encontramos dicionarizado o termo em questão nem existem ocorrências dele em corpora em linha (por exemplo, Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira, corpora do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, corpora do Linguateca), nem mesmo em páginas da Internet.

Pergunta:

Gostaria de saber, por um lado, se existe redundância na frase que se segue e, por outro, se há uma forma alternativa de expressar a mesma ideia sem recorrer à voz passiva:

«Convidaram-me a mim e à minha esposa para o concerto.»

Grato pelo esclarecimento e parabéns pelo excelente serviço público que estão a prestar à comunidade portuguesa residente no estrangeiro.

Resposta:

Existe redundância na medida em que tem dois pronomes que referem a mesma pessoa (me e mim). Pode-se, no entanto, argumentar que essa redundância é necessária para assegurar a compatibilidade entre os constituintes coordenados, pois permite que os dois (mim e minha esposa) sejam precedidos da mesma preposição e tenham assim a mesma estrutura.

Em alternativa poderia ter «Convidaram-nos, a mim e à minha esposa, para o concerto», onde «a mim e à minha esposa» surge como uma expressão intercalada que serve para explicar a quem se refere o pronome «nos».

Quanto a formas alternativas sem recurso a construção passiva, sugeriria algo como «Eu e a minha esposa recebemos um convite para o concerto».

Pergunta:

Queria saber a origem do uso de xadrez como sinônimo de prisão no português coloquial do Brasil. Obrigada.

Resposta:

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, chama-se xadrez a uma «forma visual, freq. elaborada com finalidade decorativa (em roupas, tecidos, painéis etc.), semelhante ao desenho quadriculado do tabuleiro de xadrez. Ex.: o xadrez de sua roupa».

Desta acepção de xadrez se chegou, por metonímia, à de prisão ou cela da prisão. Não é por acaso que se diz de um preso que «vê o sol aos quadradinhos».

Pergunta:

Diz o Cíber em 01/10/2008

«... numa frase como: "Ele disse muitas asneiras, o que não convém que se saiba", "o que" desempenha na frase a função de objecto directo do verbo saber...»

«... o constituinte objecto directo é composto pelo pronome que e pelo determinante o que o acompanha.»

Nuno Carvalho :: 01/10/2008

Digo eu:

— Trata-se do sujeito da oração completiva ou integrante que se saiba, uma vez que estamos perante uma passiva de se (partícula apassivante).

Comentário:

Reconheço que alguns analistas falam dum se indefinido — e talvez, nalgumas situações, se possa vislumbrar vaga hipótese da existência de tal categoria. Mas... não neste caso.

Se fosse professor de Latim, aquele colega consultor teria de sancionar como errado o caso acusativo (complemento directo) e validar, exclusivamente, o nominativo, que é o caso do sujeito.

Resposta:

Agradeço a sua questão, caro consulente. Deixe-me dizer-lhe que toca no ponto fulcral: «o que» é o objecto directo da oração completiva se interpretarmos o «se» de «que se saiba» como impessoal.

Quanto às suas reservas acerca da existência de um se impessoal, e também ao que diz sobre o Latim, remeto-o para um artigo de Ana Maria Martins, investigadora da Universidade de Lisboa que se dedica ao estudo da história da língua, chamado Construções com se: mudança e variação no português europeu (que pode encontrar aqui). Neste artigo, de que retiro um excerto, a autora mostra a evolução das construções com se e a emergência do se impessoal na Idade Média:

«No final do período medieval manifesta-se uma nova mudança que afecta as estruturas com se, incrementando a sua diversidade. Como mostram Naro (1976), para o português, e Lapesa (1981, 2000), para o espanhol, surgem a partir do século XV e tornam-se mais frequentes no século XVI frases como (4)-(5), sem concordância entre o verbo e o seu argumento interno, evidenciando a emergência de estruturas activas em que se, e já não o argumento interno do verbo, se encontra associado à posição de sujeito.
 
 (4) As outras cousas da grandeza desta terra e do seu governo e costumes se guarda pera os livros de geografia (séc. XVI. Rodrigues 1913: 177)
 (5) en el pueblo (...) se falla e deue fallar diversos linages e condiçiones (séc. XV. Lapesa 2000: 813)
 
As frases (4) e (5) são exemplificativas da construção de se impessoal nascida de um processo de reanálise da construção de se passivo. O carácter activo da nova construção m...

Pergunta:

Gostaria de saber se no português brasileiro já não são usadas as construções do tipo «contactá-lo-emos» e «ter-vo-las-íamos enviado» (às quais me habituei a chamar sandes simples e mistas, respectivamente, ao ensinar Português a estrangeiros). São complicadas, lá isso são, mas às vezes dão jeito, pelo menos para que o/a interlocutor/a saiba que não está comunicando com um zé-ninguém...

Resposta:

Não diria que já não são usadas, mas diria que são usadas muito parcamente. É, no entanto, um recurso ainda disponível e sancionado pelas gramáticas brasileiras, a par com a utilização do pronome em posição proclítica. Veja-se, por exemplo, o que diz a Nova Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara:

«Não se pospõe pronome átono a verbo no futuro do presente e futuro do pretérito (condicional). Se não forem contrariados os princípios anteriores, ou se coloca o pronome átono proclítico ou mesoclítico ao verbo.»

Refira-se, ainda, que, segundo a mesma gramática, «não se inicia período por pronome átono». Assim, se «contactá-lo-emos» estiver a iniciar uma frase, a forma proclítica «o contactaremos» deixa de estar disponível. Para dar um exemplo, será possível ter a frase «Contactá-lo-emos dentro de dois dias», mas não «O contactaremos dentro de dois dias».