Maria João Matos - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Maria João Matos
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Maria João Matos, professora de Português do ensino secundário, licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.

 
Textos publicados pela autora

O caso Maddie e, por arrasto, o caso Joana continuam a despertar o interesse da comunicação social portuguesa. Desta vez, foi através do programa Sinais de Fogo, da SIC, onde o entrevistador afirmou, referindo-se à mãe de Joana, que «a mulher [fora] batida». O entrevistado, apesar de ter menos responsabilidade que o entrevistador no que respeita à língua portuguesa, refutou a ideia, mas não lhe pegou nas palavras, limitando-se a dizer que «a mulher não [fora] agredida».

Pergunta:

Por gentileza, gostaria de saber se "CD-áudio" fica assim como está escrito: com hífen e áudio com acento, ou seja, aportuguesado. Ou deveria ficar "CD-audio"?

Muito obrigada!

Resposta:

É preferível usar a forma aportuguesada áudio em vez da latina audio. Não se justifica o uso do hífen, dado que não se trata de um nome composto.

Em Portugal pode dizer-se CD áudio ou CD de áudio. No primeiro caso, áudio é um adjectivo que qualifica o nome (CD); no segundo caso, áudio, antecedido da preposição de, é um nome que serve de complemento a CD.

No Brasil, e pela consulta feita em dicionários brasileiros de referência, verifico que áudio tem unicamente a classificação de nome, e não de adjectivo. Assim, no Brasi,l é preferível optar-se pela forma CD de áudio, à semelhança de cassete de áudio, registo de áudio, canal de áudio, etc.

No Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (S. Paulo, UNESP, 2004), encontramos as seguintes abonações:

«O programa tem recurso de áudio, mas sem vídeo»;
«[...] a linha de áudio e vídeo foi a que mais sofreu em novembro»;
«Os novos aviões 777 da United trazem um canal de áudio que capta a conversa entre a torre e o piloto».

CD é a sigla de compact disc («disco compacto»); áudio (do inglês audio, do latim audio), significa, como nome, «processo de registo, reprodução e transmissão do som. Exemplo: cassete de áudio; como adjectivo, significa «relativo à transmissão, recepção, gravação e reprodução de sons». Ex: cassete áudio (cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea).

Pergunta:

No Dicionário Houaiss (edição portuguesa da Temas e Debates) encontro a palavra alfange e alfanje para o mesmo significado. No mesmo dicionário do Brasil (on-line) e no Michaelis vem só alfanje.

Nos outros dicionários que consultei só encontro como correcto alfange com excepção do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, em linha na Net, que indica: «Nota: no Brasil, alfanje.»

Gostaria de saber se vamos continuar a ter duas grafias diferentes para o mesmo significado, após o Novo Acordo Ortográfico.

Conto, como sempre, com a vossa preciosa ajuda.

Resposta:

Apesar de se verificar alguma oscilação nos dicionários portugueses, a grafia portuguesa é alfange, a registada no Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, e também a que aparece nos vocabulários ortográficos portugueses elaborados com base no novo Acordo Ortográfico: Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Porto Editora, e Vocabulário Ortográfico do Português (VOP), do ILTEC.

Já no Brasil, tanto o dicionário brasileiro Houaiss como o VOLP da Academia Brasileira de Letras registam as duas variantes: alfange e alfanje.

O novo Acordo Ortográfico respeita as variantes ortográficas, desde que, naturalmente, não sejam abrangidas pelas novas normas. E as duplas grafias vão necessariamente continuar, principalmente nas situações em que a diferença de pronúncia impossibilita a uniformização. São exemplo disso: António, facto, aspeto, subtil, amígdala (Portugal)/Antônio, fato, aspecto, sutil, amídala (Brasil), etc., etc.

Pergunta:

As expressões «dar-se o trabalho»/«dar-se ao trabalho», «dar-se o luxo»/«dar-se ao luxo», «dar-se o respeito»/«dar-se ao respeito» e outras análogas parecem ter o mesmo significado no português do Brasil, sendo, portanto, absolutamente equivalentes. A alternância parece ser apenas uma questão de estilo.

Exemplificando com as duas orações seguintes: «Joana deu-se o trabalho de arrumar a mesa para o almoço» e «Joana deu-se ao trabalho de arrumar a mesa para o almoço», podemos concluir que, na primeira, Joana deu a si o trabalho de arrumar a mesa para o almoço, arrumando-a. Na segunda, Joana entregou-se (deu-se) ao trabalhado de arrumar a mesa para o almoço, arrumando-a. Realmente, duas maneiras diferentes de se dizer a mesmíssima coisa.

Segundo a ilustre e erudita consultora Dona Eva Arim, do Ciberdúvidas, em resposta de 9 de outubro de 2006, a um meu patrício, «dar-se ao» tem no português europeu o sentido de «aceitar a realização de uma tarefa considerada fora do âmbito das suas atribuições por imperativos de rigor, qualidade...», ora, no português brasileiro, este sentido a mesma locução não dá à oração onde aparece. Somente significa que alguém se deu ou se entregou ou se dedicou a algo, sendo este algo da sua atribuição ou não. Tudo conforme o que está exposto no parágrafo anterior.

Como ficou claro, «dar-se ao» também é do português do Brasil e não somente do de Portugal, como afirmou a consultora supramencionada em sua resposta, aliás, entre nós, brasileiros, usa-se cada vez mais apenas «dar-se ao»; «dar-se o» está desaparecendo.

Feitos estes esclarecimentos, gostaria de indagar se a locução «dar-se a», embora semanticamente equivalente a «dar-se ao», não seria a mais antiga e a mais correta na nossa língua, como li em alguns textos ...

Resposta:

No português de Portugal, a construção correcta e usual é com o verbo (dar-se) seguido da preposição a (ao é a forma contraída da preposição a com o artigo o): «dar-se ao trabalho de», «dar-se ao luxo de», «dar-se ao respeito». São estas as construções correntes em Portugal, todas elas confirmadas pelo Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea.

 

Relativamente ao termo trabalho, o dicionário brasileiro Houaiss atesta a construção «dar-se o trabalho de», o que já não acontece em relação aos outros exemplos, pois as construções registadas nesse dicionário são, como em Portugal, «dar-se ao luxo de» e «dar-se ao respeito de».

 

Sobre esta matéria pronuncia-se o ilustre filólogo Napoleão Mendes de Almeida, no seu Dicionário de Questões Vernáculas, entrada «dar-se ao luxo»: «É construção normal, em que o verbo dar está pronominalmente empregado com a significação de render-se, entregar-se: “Cada qual se dá aos passatempos que mais aceitos lhe são” (Castilho, apud Caldas Aulete) – “Também aos maus se dá mas falsamente” (Camões, X, 84).

 

Tem aí o se função de objeto direto, e “ao luxo” a de objeto indireto. É a mesma construção de “consagrar-se ao magistério”, “entregar-se ao vício”.»

 

Pergunta:

Estou lendo uma edição muito antiga de Viagens na Minha Terra, em que Garrett empregou amiúde o vocábulo indicível. Trata-se de uma variante aceitável do adjetivo indizível?

Muito grato!

Resposta:

Indicível é o mesmo que indizível, mas esse termo caiu em desuso, ou praticamente em desuso. Actualmente pode surgir, por exemplo, com intenção estética, como acontece em Sophia de Mello Breyner Andresen, que o usa na sua poesia:

 

«E também à treva interior por que somos habitados/E dentro da qual navega indicível o brilho» (in «Os Gregos», Obra Poética III).