Maria João Matos - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Maria João Matos
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Maria João Matos, professora de Português do ensino secundário, licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Li o seguinte numa publicação religiosa: «Precisamos de alguém de fora para dar-nos o domínio próprio que os estóicos desejavam, e esse alguém é o Espírito Santo.» Nunca vi nos melhores escritores a combinação de um pronome demonstrativo com um pronome indefinido, mas percebo que tal junção se tem intensificado nas matérias que se publicam aqui. Necessito de vossa opinião, pois creio ser muito estranha essa sintaxe... Acredito também que tal arranjo não tem nenhum apoio clássico. Na língua latina nunca jamais vi «hic aliquis» nem «iste aliquis».

Illustrate me! Tenebras solvite!

Resposta:

Alguém, para além de pronome indefinido, é também um substantivo masculino. Neste caso, significa «ser humano», «pessoa», e pode vir acompanhado de determinante (pronome adjunto, no Brasil). A expressão «esse alguém» é já utilizada nos séculos XIX e XX, tanto por escritores portugueses como brasileiros, como comprovam os seguintes excertos, retirados do Corpus do Português

Alexandre Herculano, O Bobo

«O esperto pajem tinha notado quão frequentes vezes seu tio lançara os olhos inquietos para a porta: isto lhe provara que esperava alguém, e a falta do alferes-mor que esse alguém era ele.» 

Machado de Assis, Balas de Estado

«Parei, recuei, avancei e disse-lhe que era meu, que, se estava ocupado por alguém, esse alguém que saísse e mo restituísse.» 

Eça de Queirós, Alves & Companhia: 

«Nítido sotaque erablesiano, mas esse alguém, quando interpelado, declarava ter vivido toda a sua vida em Becre.»

Pergunta:

Normalmente, em acções de formação, o formador leva consigo um objecto, que coloca à vista de todos os formandos, nos quais suscita grande curiosidade, porque não parece ter qualquer ligação com o conteúdo programático da acção de formação. O formador dá-lhe o nome de «obstáculo epistemológico». Porquê este nome?

Resposta:

A epistemologia é a ciência que trata do conhecimento científico. Reflete sobre o modo como se constrói a ciência, como progride… A noção de «obstáculo epistemológico» é defendida por Gaston Bachelard e significa que é através dele que se analisam as condições psicológicas do progresso científico.

Assim, o sucesso da ciência reside, primeiramente, no reconhecimento dos obstáculos e, depois, na sua superação. A realidade é o primeiro obstáculo. O pesquisador/cientista, ao olhar para o seu objeto de estudo, incorre no perigo de se deixar levar pelo que é visível, pelo que se manifesta, dando-lhe indevidamente um estatuto de verdade que ele pode não ter. E este obstáculo está relacionado com um outro, que são as nossas convicções, as nossas crenças e concepções, todos os conhecimentos adquiridos tomados como certos, que ensombram a procura da verdade e comprometem o processo de pesquisa, desde os seus fundamentos até aos seus resultados, impedindo o progresso científico.

No contexto da formação, penso que o formador pretende desmontar os esquemas mentais, as ideias pré-concebidas, as opiniões infundadas dos formandos, antes de lhes ensinar o que quer que seja, pois esses conhecimentos infundados são obstáculos à aprendizagem que se pretende que ocorra.

Nota: Agradece-se o esclarecimento prestado pela dra. Helena Cabaço.

N. E. (14/11/2016) – Por influência do termo inglês...

Pergunta:

Gostaria de saber se se deve dizer "cribriforme", ou "cribiforme", ou se ambas são válidas.

Obrigada.

Resposta:

À excepção do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, que indica que cribiforme é o mesmo que cribriforme, todos os dicionários consultados registam apenas a forma cribriforme (do latim cribrum, cribri, «crivo» + -forme = forma de crivo), pelo que me parece mais seguro utilizar este último termo. A palavra cribriforme significa «que tem forma de crivo»; «designativo do osso etmóide».

Pergunta:

Qual a função da palavra que nas seguintes frases?

— «Que agradável manhã!»

— «Tenho que ir à cidade.»

— «Há nela um quê de atraente.»

— «Haverá sempre necessidade de que o povo fiscalize as acções dos políticos.»

— «Só desejamos uma coisa: que a nova geração seja melhor que a anterior.»

Resposta:

Penso que pretende saber a classe gramatical e não a função sintáctica de cada que. Vou tentar esclarecê-la:

 

1. «Que agradável manhã!» — Determinante; insere-se na subclasse dos determinantes interrogativos, mas tem valor exclamativo. Poder-se-ia considerar um determinante exclamativo, mas as gramáticas não contemplam esta subclasse.

 

2. «Tenho que ir à cidade.» — Este que não se insere em nenhuma das subclasses próprias da palavra, porque a frase, embora muito usual, sintacticamente não é a mais correcta, a menos que se substitua o que pela preposição de: «Tenho de ir à cidade.» No Dicionário Houaiss, entrada ter, GRAM. b), considera-se que este que «tem valor como que prepositivo», ou seja, tem valor de preposição. Se se usar, em vez de que, a preposição de, a classificação gramatical já não levanta problemas.

 

3. «Há nela um quê de atraente.» — Nome masculino singular, por isso vem antecedido do determinante artigo indefinido um. A expressão um quê pode ser substituída por alguma coisa (= determinante indefinido + nome).

Pergunta:

Tenho algumas dúvidas sobre virgulação.

1 — «Segurava um pincel comprido na mão direita, uma paleta de tinta na esquerda e sorria.»

Há vírgula antes do e?

2 — «Porque ele não veio e ela não esperou, os dois brigaram.»

Há vírgula antes de e devido aos sujeitos diferirem?

3 — «Escrevi para explicar o engano e pedir desculpas mesmo assim.»

Há vírgula antes de mesmo assim?

4 — «Fiquei feliz, porque senti que era como se uma pessoa interessante houvesse se identificado comigo e eu, com ela.»

A vírgula, aqui, está correta? Se não, como eu deveria tê-la empregado?

Obrigada.

Resposta:

Quando usamos as vírgulas, temos de ter em mente que umas são obrigatórias, outras são proibidas, e algumas, facultativas… Estas últimas dependem da intenção de quem as usa, ou, neste caso, da interpretação de quem as coloca. Feita esta ressalva, eu pontuaria as frases da seguinte maneira:

1 — «Segurava um pincel comprido na mão direita, uma paleta de tinta na esquerda, e sorria.»

Coloquei a vírgula antes da conjunção e, apesar de normalmente não se usar nessa situação, porque a frase apresenta duas ideias distintas (correspondendo a cada uma delas uma oração):

 

– A primeira oração é «Segurava um pincel comprido na mão direita, uma paleta de tinta na esquerda»;

 

– A segunda oração é «e sorria».

 

A vírgula ajuda a perceber que aquele elemento da frase («uma paleta de tinta na esquerda») faz parte da primeira oração, faz parte, aliás, do objecto directo («um pincel comprido na mão direita, uma paleta de tinta na esquerda»). A vírgula ajuda a clarificar a estrutura da frase.

 

2 — «Porque ele não veio e ela não esperou, os dois brigaram.»

Poderia colocar a vírgula antes da conjunção e, dado as duas orações terem sujeitos diferent...