Maria João Matos - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Maria João Matos
Maria João Matos
23K

Maria João Matos, professora de Português do ensino secundário, licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Caros amigos, minha dúvida é referente a um parágrafo de um livro que estou lendo. Eis o parágrafo:

«Na noite anterior ao desabamento, em Friuli, da represa Vajont, em 9 de outubro de 1963, provocando uma imensa catástrofe, ouviram-se estalos que provinham daquele lado, sem que ninguém fizesse caso.»

Quando li pela primeira vez o texto, entendi que 9 de outubro de 1963 era a data do desabamento da represa. Ao ler outra vez o mesmo texto, entendi que a data de 9 de outubro de 1963 era referente à "noite anterior ao desabamento". Nesse tipo de estrutura textual, qual a interpretação correta a se fazer? Que tipo de estrutura é essa?

Desde já agradecido, despeço-me com um fraterno abraço!

Resposta:

A frase, construída tal como está, é de facto ambígua e precisa de uma melhor formulação. Com um pequeno ajustamento, não só a ambiguidade desaparece como a construção sintáctica melhora:

«Na noite anterior ao desabamento, que ocorreu em Friuli, da represa Vajont, em 9 de Outubro de 1963, provocando uma imensa catástrofe, ouviram-se estalos que provinham daquele lado, sem que ninguém fizesse caso.»

Nesta construção, a ambiguidade desaparece, porque o verbo ocorrer só pode referir-se a desabamento, bem como o pronome relativo que, sujeito da oração que introduz.

Assim, nesta estrutura sintáctica, fica claro o que aconteceu «na noite anterior ao desabamento» (1) e o que se refere ao desabamento ocorrido (2):

1. «Na noite anterior ao desabamento […] ouviram-se estalos que provinham daquele lado, sem que ninguém fizesse caso.»

2. « [… desabamento] que ocorreu em Friuli, da represa Vajont, em 9 de outubro de 1963, provocando uma imensa catástrofe […].»

Pergunta:

Qual o significado do provérbio «O mal de muitos alívio é»?

Resposta:

Significa que ficamos menos incomodados com o que nos acontece de mal, se houver mais gente a passar pelo mesmo. O provérbio existe noutras versões, como:

Mal de muitos é conforto.

Mal de muitos consolo é.

Mal de muitos meu conforto é.

Mas nem sempre esse consolo acontece e, por isso, há outros provérbios que o contrariam:

Mal de muitos, triste consolo.

Mal de muitos é desgraça grande.

Esta frase dá a cara a um texto publicitário que passa no canal televisivo AXN, em Portugal, a anunciar, presumo eu, um qualquer filme de terror. Não é preciso ser a Miss Marple para comprovar o duplo assassínio: o da personagem vítima do acto sanguinário, claro, mas também o da sintaxe estropiada…

Pergunta:

1. Os adjectivos requintado, atmosférico, ferrugenta, caótico, angélico, demoníaco, bélico, romanesca, leonina, filatélico e ribeirinho são relacionais?

2. Qual é o antónimo de requintado e alucinante?

Muito obrigada.

Resposta:

1. Requintado é um adjectivo qualificativo. Atmosférico, filatélico e ribeirinho são relacionais. Quanto aos outros adjectivos, será necessário contextualizá-los. Assim, temos:

Ferrugento:

«Faca ferrugenta» (que tem ferrugem)  — relacional

«Articulações ferrugentas» (velhas) — qualificativo

Caótico:

«Estado caótico» (conceito da física) — relacional

«Mundo caótico» (confuso) — qualificativo

Angélico:

«Asas angélicas» (próprias dos anjos) — relacional

«Ar angélico» (inocente) — qualificativo

Demoníaco:

«Barbicha demoníaca» (do demónio) — relacional

«Carácter demoníaco» (mau) — qualificativo

Bélico:

«Capacete bélico» (próprio da guerra) — relacional

«Carácter bélico» (conflituoso) — qualificativo

Leonino:

«Equipa leonina» (dos leões) — relacional

«Carácter leonino» (pérfido) — qualificativo

Romanesca:

«Trama romanesca» (própria de romance) — relacional

Pergunta:

Estou muito confusa... pois escrevo, actualmente, os dias da semana, os meses do ano, segundo o novo acordo ortográfico, ou seja, com letra minúscula... e, como tal, não devo considerar nomes próprios? Ou sim?

Obrigadíssima.

Resposta:

Em primeiro lugar, é apanágio dos nomes próprios escreverem-se com letra maiúscula. E o que está subjacente ao texto do Acordo Ortográfico de 1990 é que os nomes que passaram a grafar-se com minúscula sejam considerados nomes comuns. Parece, de facto, que, na Base XIX do novo acordo, o leque de nomes próprios está essencialmente restringido aos nomes que referem inequivocamente uma entidade única (nomes de pessoas, de animais, de lugares, de figuras mitológicas, de astros, de instituições...). A excepção são os nomes das festas religiosas, que mantêm a maiúscula, possivelmente por respeito pela tradição (Natal, Páscoa, etc.).

Quanto aos nomes dos meses e das estações, adopta-se agora a norma já em vigor para os dias da semana, indo-se ao encontro do critério já anteriormente seguido pelos brasileiros, que consideram que se trata de nomes comuns.

Veja-se, a este propósito, a posição de Evanildo Bechara*:

«SUBSTANTIVO COMUM é o que se aplica a um ou mais objetos particulares que reúnem caraterísticas inerentes a dada classe: homem, mesa, livro, cachorro, lua, sol, fevereiro, segunda-feira, papa.

Os cinco últimos exemplos patenteiam que há substantivos comuns que são nomes individualizados, não como os nomes próprios, mas pelo contexto extralinguístico e pelo nosso saber que nos diz que no contexto "natural" nosso só há uma lua, um sol, um mês fevereiro e um só dia da semana segunda-feira e, no contexto "cultural", só há um papa. Se forem escritos ...