Luís Filipe Cunha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Luís Filipe Cunha
Luís Filipe Cunha
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Doutorado em linguística; investigador do Centro de Linguística da Universidade do Porto.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Por que pode formar-se voz passiva na frase «Eles continuaram observando as pessoas» — «As pessoas continuaram a ser observadas por eles», mas não se pode em «Eles ficaram observando as pessoas» — «As pessoas ficaram (?) sendo observadas por eles»?

Obrigado.

Resposta:

Dados os conhecimentos de que disponho actualmente sobre estes assuntos, não me parece muito fácil dar uma resposta definitiva e cabal a uma questão de tão grande complexidade; vou, no entanto, procurar desenvolver uma hipótese que me parece, de momento, a mais plausível.

1. Parece-me importante notar, em primeiro lugar, que, tipicamente, a passiva não altera significativamente o perfil aspectual das situações a que se aplica. Comparem-se, a este respeito, os seguintes pares de frases:

(1) a. «O João escreveu o artigo numa semana/* às cinco da tarde.»
     b. «O artigo foi escrito (pelo João) numa semana/* às cinco da tarde.»

(2) a. «Os miúdos partiram o vidro às cinco da tarde/* durante duas horas.»
     b. «O vidro foi partido pelos miúdos às cinco da tarde/* durante duas horas.»

Embora as construções passivas possam desempenhar algum papel em termos aspectuais, este nunca será muito decisivo, como os exemplos atrás parecem atestar.

2. Tendo em conta que a passivização não altera substancialmente o perfil aspectual das predicações, não surpreende que os verbos de operação aspectual considerados na literatura [cf. Cunha (1998); Oliveira et al. (2004)] surjam, sem grandes problemas, combinados com estruturas passivas. Iremos considerar aqui, a título de exemplo, as construções com começar a, estar a, continuar a e passar a. Como é possível constatar pelas frases que se seguem, não existem grandes restrições à passivização neste tipo de estruturas:

(3) a. «O João começou a construir a casa.»
     b. «A casa c...

Pergunta:

Vejo e ouço repetidamente esta expressão «x quilómetros de distância» (e outras semelhantes, como «a poucos passos de distância» ou «sala com 24 m² de área») em todos os meios de comunicação. Gostaria de saber se estas redundâncias podem ser consideradas erros — não se diz 2 horas de tempo, por exemplo. A noção da grandeza em questão parece-me suficientemente implícita na unidade de medida, desde que não haja outras grandezas envolvidas (como numa relação altura-largura, por exemplo).

Obrigado.

Resposta:

Poderemos dizer que a inadequação do uso de expressões como «de distância» ou «de área» vai depender muito do contexto em que irão ocorrer. Se tais expressões são usadas de forma redundante e sem desempenharem qualquer função mais específica, por exemplo em termos estilísticos, revelam-se, de facto, inadequadas. Um exemplo como *«O atleta correu 6 quilómetros de distância» será, naturalmente, inapropriado. No entanto, numa frase como «O navio encontra-se afundado a 6 quilómetros de distância e 12 de profundidade», o recurso à expressão «de distância» torna-se, naturalmente, necessário para a compreensão cabal do enunciado.

Num exemplo como «sala com 24 m² de área», a redundância é ainda mais evidente, já que a unidade de medida utilizada remete inequivocamente para a grandeza a que se refere.

Pergunta:

É correto usar a preposição a na expressão «facilidade de aprendizado a novas tecnologias»? No caso, a preposição a estaria no lugar da locução adverbial «em relação a».

Resposta:

Pelo menos no que diz respeito ao português europeu, uma construção como «facilidade de aprendizado "a" novas tecnologias» não é corre{#c|}ta; na realidade, a forma usada na variedade-padrão será «facilidade de aprendizado em novas tecnologias, a par com a estrutura «em relação a». Note-se que a preposição vai estar dependente do nome facilidade, que tipicamente rege em (ex: «facilidade em comprar casa»).

Pergunta:

Existe o plural de Administração Pública? É correto utilizar o termo "Administrações Públicas"?

Resposta:

O uso do plural implica, tipicamente, a existência de algum tipo de delimitação das entidades designadas pelos sintagmas nominais, ou seja, a possibilidade de as identificar enquanto unidades autónomas ou discretas. O plural aplica-se quando nos queremos referir a um conjunto de entidades delimitadas da mesma natureza.

Ora, normalmente, um tal requisito poderia parecer impossível quando aplicado a uma expressão como Administração Pública, na medida em que, à primeira vista, esta não seria delimitável. No entanto, existem contextos em que uma tal delimitação é possível, viabilizando, assim, o plural da referida expressão. Por exemplo em «As Administrações Públicas dos diversos países europeus», o uso do plural é perfeitamente justificado na medida em que cada Administração Pública de um país pode ser encarada como uma entidade autónoma e, nesse sentido, fazer parte de um conjunto de várias entidades "independentes" do mesmo tipo.

Pergunta:

Qual é a forma correcta das seguintes frases:

1— «O galo é a mais bonita das aves da capoeira.»

2— «O galo é o mais bonito das aves da capoeira»?

Resposta:

A forma correcta será a representada na primeira frase, isto é, «O galo é a mais bonita das aves da capoeira». Vejamos porquê.

Nesta frase estamos a atribuir ao sujeito, «o galo», uma propriedade, «ser bonito», que é avaliada em função de uma estrutura em que se recorre a uma escala (daí o uso do adjectivo no superlativo relativo de superioridade). Essa escala de avaliação é constituída pelo conjunto formado pelas «aves da capoeira», e o sujeito «o galo» tem de ser integrado no referido conjunto, ocupando a posição mais elevada da escala estabelecida.

Nesse sentido, a frase em apreço pode ser parafraseada por «O galo é a ave mais bonita de entre (todas) as aves da capoeira».

No caso da segunda frase, «O galo é o mais bonito das aves da capoeira», não temos a indicação explícita da integração do sujeito na escala mencionada, constituída pelas «aves da capoeira», pelo que a frase se torna anómala. Ela corresponderia a algo do género de «O galo é o galo mais bonito das aves da capoeira», revelando que não existe identidade entre os termos de comparação. Ou seja, o galo está integrado na escala constituída pelos restantes galos e não naquela formada pelo conjunto das aves da capoeira.