Dados os conhecimentos de que disponho actualmente sobre estes assuntos, não me parece muito fácil dar uma resposta definitiva e cabal a uma questão de tão grande complexidade; vou, no entanto, procurar desenvolver uma hipótese que me parece, de momento, a mais plausível.
1. Parece-me importante notar, em primeiro lugar, que, tipicamente, a passiva não altera significativamente o perfil aspectual das situações a que se aplica. Comparem-se, a este respeito, os seguintes pares de frases:
(1) a. «O João escreveu o artigo numa semana/* às cinco da tarde.»
b. «O artigo foi escrito (pelo João) numa semana/* às cinco da tarde.»
(2) a. «Os miúdos partiram o vidro às cinco da tarde/* durante duas horas.»
b. «O vidro foi partido pelos miúdos às cinco da tarde/* durante duas horas.»
Embora as construções passivas possam desempenhar algum papel em termos aspectuais, este nunca será muito decisivo, como os exemplos atrás parecem atestar.
2. Tendo em conta que a passivização não altera substancialmente o perfil aspectual das predicações, não surpreende que os verbos de operação aspectual considerados na literatura [cf. Cunha (1998); Oliveira et al. (2004)] surjam, sem grandes problemas, combinados com estruturas passivas. Iremos considerar aqui, a título de exemplo, as construções com começar a, estar a, continuar a e passar a. Como é possível constatar pelas frases que se seguem, não existem grandes restrições à passivização neste tipo de estruturas:
(3) a. «O João começou a construir a casa.»
b. «A casa começou a ser construída pelo João.»
(4) a. «O João está a ler o jornal.»
b. «O jornal está a ser lido pelo João.»
(5) a. «O assaltante continuou a insultar os polícias.»
b. «Os polícias continuaram a ser insultados pelo assaltante.»
(6) a. «A polícia passou a patrulhar este bairro.»
b. «Este bairro passou a ser patrulhado pela polícia.»
3. Uma observação interessante prende-se com o fa{#c|}to de que, enquanto os verbos de operação aspectual, apesar das condições de ocorrência a que estão sujeitos, se podem combinar com estruturas predicativas envolvendo o verbo ser [veja-se (7)], ficar a parece ser muito mais restritivo a este nível, não se combinando normalmente com este tipo de construções [veja-se (8)]:
(7) a. «O meu cão começou a ser agressivo.»
b. «A Maria está a ser simpática.»
c. «O João continua a ser preguiçoso.»
d. «(Quando se naturalizou), o Rui passou a ser dinamarquês.»
(8) a. * «O meu cão ficou a ser agressivo.»
b. * «A Maria ficou a ser simpática.»
c. * «O João ficou a ser preguiçoso.»
d. * «(Quando se naturalizou), o Rui ficou a ser dinamarquês.»
Dados como estes sugerem, pois, uma primeira hipótese de explicação para a agramaticalidade de uma frase como * «As pessoas ficaram sendo/a ser observadas por eles». Dado que (i) ficar a parece não ser compatível com estruturas predicativas envolvendo ser e que (ii) a construção passiva no português é formada a partir de ser + particípio passado, então a construção passiva enfrentará dificuldades em comparecer sob o escopo de ficar a, dadas as suas restrições combinatórias com o estruturas envolvendo o verbo ser.
4. Uma segunda hipótese de explicação para a anomalia da frase em apreço passa por considerar não tanto as restrições combinatórias em termos de selecção de predicadores manifestadas por ficar a mas antes a sua própria caracterização semântica. Para tal, teremos de distinguir um operador ficar a que envolve mudança de estado ou resultatividade, equivalente a «passar a» [ex.: «Depois do arranjo, o meu carro ficou a funcionar» (= «passou a funcionar?)], e um operador ficar a que não envolve mudança, remetendo para a permanência de uma dada situação, mais ou menos equivalente a permanecer [ex.: «O Jorge ficou a contemplar o mar» (= «continuou/permaneceu a contemplar o mar»)].
4.1. Assim, ficar a envolvendo mudança de estado ou resultado não apresenta quaisquer restrições quanto ao tipo de sujeito com que comparece (cf. «O João ficou a trabalhar» vs. «O motor do carro ficou a trabalhar») e parece mesmo, dadas as circunstâncias apropriadas, surgir, sem problemas, com estruturas passivas, como ilustrado em (9) e (10).
(9) a. «O vice-presidente ficou a dirigir a associação.»
b. «A associação ficou a ser dirigida pelo vice-presidente.»
(10) a. «A Maria ficou a preparar a festa.»
b. «A festa ficou a ser preparada pela Maria.»
4.2. Já ficar a com valor de permanência parece ter um comportamento bem distinto. Assim, apenas parece admitir sujeitos agentivos (contrastem-se «O João ficou a correr no parque» vs. * «O rio ficou a correr no parque», ou «As crianças ficaram a fazer barulho» vs. * «As ondas do mar ficaram a fazer barulho». Se considerarmos que, numa frase como «Eles ficaram observando/a observar as pessoas», ficar a descreve permanência e não mudança de estado, e se assumirmos que ficar a, quando designa permanência, requer um sujeito de tipo agentivo, teremos uma explicação para a não aceitabilidade da frase passiva * «As pessoas ficaram sendo/a ser observadas por eles». Na realidade, os sujeitos das frases passivas são, tipicamente, não agentivos (o argumento agentivo é realizado pelo chamado agente da passiva). Ora, se ficar a requer, na sua leitura de permanência, um sujeito agentivo, todas as passivas estão, à partida, excluídas da comparência sob o escopo deste operador, pelo simples facto de nunca apresentarem sujeitos de natureza agentiva.
5. Em conclusão, e regressando às frases apresentadas na questão que nos foi dirigida, diremos que: (i) o par «Eles continuaram observando/a observar as pessoas» — «As pessoas continuaram a ser observadas por eles» não oferece qualquer problema, porque os operadores aspectuais, de que continuar a é um exemplo, não impõem quaisquer restrições à passivização; (ii) já no par «Eles ficaram observando/a observar as pessoas» — * «As pessoas ficaram sendo/a ser observadas por eles», a passiva não é possível ou devido a restrições de selecção de predicadores por parte de ficar a (em particular porque ficar a não se mostrará compatível com construções envolvendo o verbo ser) ou devido à própria semântica de ficar a (tratando-se de ficar a com valor de permanência, sem envolver mudança de estado, o operador em questão teria como requisito fundamental a presença de um sujeito de tipo agentivo, o que acontece quando temos frases activas mas não se verifica em contextos passivos). A decisão por uma destas hipóteses requer uma investigação mais aprofundada das propriedades semânticas de ficar a, que não nos é possível empreender neste momento.
Bibliografia
Cunha, Luís Filipe, (1998) Os Operadores Aspectuais do Português: Contribuição para Uma Nova Abordagem — Cadernos de Linguística, n.º 1. Porto, Centro de Linguística da Universidade do Porto.
Oliveira, Fátima, Luís Filipe Cunha & Anabela Gonçalves (2004) "Aspectual Verbs in European and Brazilian Portuguese”. In Journal of Portuguese Linguistics, vol. 3, n.º 1: pp. 141-173.