José Neves Henriques (1916-2008) - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
José Neves Henriques (1916-2008)
José Neves Henriques (1916-2008)
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Professor de Português. Consultor e membro do Conselho Consultivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Antigo professor do Colégio Militar, de Lisboa; foi membro do Conselho Científico e diretor do boletim da Sociedade da Língua Portuguesa; licenciado, com tese, em Filologia Clássica pela Universidade de Coimbra; foi autor de várias obras de referência (alguns deles em parceria com a sua colega e amiga Cristina de Mello), tais como Gramática de hojeA Regra, a Língua e a Norma A Regra, Comunicação e Língua PortuguesaMinha Terra e Minha Gente e A Língua e a Norma, entre outrosFaleceu no dia 4 de março de 2008.

CfMorreu consultor do Ciberdúvidas

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Considerando que até hoje ninguém conseguiu superar a genialidade no campo da Física de Einstein, devo dizer:

A) Einstein foi o maior gênio de todos os tempos ou
B) Einstein é o maior gênio de todos os tempos.

Muito obrigado.

Resposta:

Einstein foi/é o maior génio

Como ser humano, Einstein foi. Pertence ao passado. Mas, como cientista, ele foi e ainda é. Este é tem mais força, mais peso em nossa imaginação do que o foi. O seu valor impõe-se-nos com mais poder em nossa consciência do que o seu existir. Por isso, a frase mais de acordo com a realidade é a frase (B):

Einstein é o maior génio [gênio, no Brasil; génio, em Portugal] de todos os tempos.

E não a frase (A):

Einstein foi o maior génio de todos os tempos.

Como, em certos aspectos, o assunto destas consultas pode ser polémico, estamos ao dispor do nosso consulente para qualquer discordância – é também com as discordâncias que aprendemos...

Pergunta:

Pedro, querendo elogiar sua namorada, deve dizer:

A) Vc. foi a melhor coisa que já me aconteceu ou
B) Vc. É a melhor coisa que já me aconteceu
C) Se ela não existisse mais deveria dizer o quê?
D) E se ela não fosse mais namorada de Pedro?

Resposta:

Vc. foi/é a melhor coisa que...

(A) Vc. foi a melhor coisa que já me aconteceu.

(B) Vc. é a melhor coisa que já me aconteceu.

A resposta não é fácil. O acontecimento é passado. Mas a namorada, mais importante que o acontecimento, é presente. Se for esta a circunstância no momento da fala, somos levados a proferir a frase (B). Mas se o falante tiver em mente o que aconteceu para que ela passasse a ser a namorada, ele seria impelido a dizer a frase (A). Tudo depende das circunstâncias: acidentais/casuais e psicológicas.

Se a namorada já não existisse, permaneceria nele a saudade. Como sabemos, a saudade assenta no amor, no desejo, na recordação e no tempo passado. E como não há saudade sem tempo passado, o Pedro diria a frase (A) ou outras em tempo passado:

a) Ela foi a minha vida.

b) Ela foi todo o meu ser.

Mas como a saudade torna presente as coisas passadas, que às vezes sentimos que se prolongarão no futuro, o Pedro poderá dizer frases como as seguintes:

c) Ela é todo o meu ser.

d) Ela continua viva em mim.

e) Ela continuará sempre viva em mim.

f) Ela continua e continuará sempre viva e actuante no meu coração.

Se ela já não fosse a namorada do Pedro... depende da situação em que se separaram. Poderia ele proferir frases de amor, de desespero, de indiferença, de repulsa, etc.

Pergunta:

Na passagem de uma certa banda norte-americana pelo Brasil, seus integrantes trocaram de instrumentos - o baterista por exemplo assumiu o lugar do guitarrista - e nunca mais tornaram a fazer isso:
Portanto, considerando que o show já terminou, devo dizer que:

A) A platéia brasileira foi a única que pôde conferir esse raro momento.
ou
B) A platéia brasileira é a única que pôde conferir esse raro momento (já que até hoje nenhuma platéia, exceto a brasileira, pôde conferir o momento)

Resposta:

A platéia brasileira foi/é a única que...

Consideremos as duas frases:

(A) A platéia brasileira foi a única que...

(B) A platéia brasileira é a única que...

No caso presente, não se trata duma plateia [platéia, no Brasil; plateia, em Portugal] como recinto, mas duma plateia como conjunto de espectadores. É evidente que esta plateia já não existe. Acabou o espectáculo, desfez-se a plateia. Ela pertence apenas ao passado, porque outra que se forme já não é a mesma. Sendo assim, devemos empregar a frase (A).

Nota. – Peço desculpa daquilo que vou dizer. O prezado consulente refere-se a «o show já terminou». A nossa língua, que é profunda, vasta, maleável e rica, e bem mais do que a inglesa, não precisa do «show» para nada.

Nós, brasileiros e portugueses, não nos ponhamos em situação inferior e digamos espectáculo. E ainda, noutros casos, exposição, exibição, revista, teatro, pompa, esplendor, ostentação, aparato, demonstração, manifestação, prova, testemunho, pretexto, sinal, aparência, semblante, vestígio, indício, exterior, alarde, divertimento, e mais ainda. Reparemos nesta coisa triste: se nos agarrarmos ao «show», empobrecemos o nosso idioma em 22 palavras, pelo menos. E que pode um povo com uma língua pobre?

Pergunta:

Como todos sabemos Pelé marcou 10 gols numa mesma partida e até hoje ninguém conseguiu atingir esta marca. Portanto, devo dizer que:

1) Considerando que Pelé ainda existe mas não joga mais futebol:
A) Pelé foi o único jogador a marcar 10 gols numa mesma partida ou
B) Pelé é o único jogador a marcar 10 gols numa mesma partida

2) Considerando que Pelé ainda joga futebol:
A) Pelé foi o único jogador a marcar 10 gols numa mesma partida ou
B) Pelé é o único jogador a marcar 10 gols numa mesma partida

3) Considerando que Pelé não existe mais:
A) Pelé foi o único jogador a marcar 10 gols numa mesma partida ou
B) Pelé é o único jogador a marcar 10 gols numa mesma partida
P.S.: As 3 perguntas devem levar em consideração que independentemente da existência ou da suposta inexistência de Pelé até hoje ninguém conseguiu superar sua marca.

Resposta:

As suas consultas estão bem feitas e dão para pensar, uma vez que, no mesmo caso, se apresenta Pelé em mais de uma situação:

1. – Considerando que Pelé ainda existe mas não joga

Vejamos, então, as suas frases:

(A) Pelé foi o único jogador a marcar 10 goles (e não gols; golos, em Portugal, e goles, no Brasil)) numa mesma partida.

(B) Pelé é o único jogador a marcar 10 golos numa mesma partida.

Apresenta-se aqui Pelé em duas situações de tempo.

Quanto à sua vida, Pelé foi (passado) e ainda é (presente).

Quanto à sua actividade, Pelé foi (passado) mas já não é (presente).

Uma vez que Pelé, como jogador, já não existe de verdade, mas apenas em nossa imaginação, não parece lógico proferirmos a frase (B), mas sim a frase (A), visto que o que ressalta à nossa imaginação é Pelé como jogador que foi, mas já não é; e não como vida humana, que foi e ainda é.

A frase (B) tem, pois, uma explicação, mas psicológica e não lógica: Pelé continua presente (Pelé é), em nossa imaginação, como jogador.

Nota. – Peço licença para dizer o seguinte: no Brasil, o inglês «goal» está aportuguesado em gol. O plural é goles e não «gols».

Em Portugal, está aportuguesado em golo, cujo plural é golos. Seria conven...

Pergunta:

Gostaria de saber se ambas as formas estão correctas. Por exemplo, pode-se dizer fiquei de contactar e/ou fiquei em contactar.
Obrigada .

Resposta:

Vejamos então as seguintes frases:

(a) Fiquei de contactar com a Maria.

(b) Fiquei em contactar com a Maria.

Sintacticamente, ambas as frases estão correctas. Mas devemos preferir a frase (a), porque soa melhor.

Na frase (b), temos o seguimento desagradável destes dois ditongos: ei de «fiquei» e em (=ãe), preposição.

Além disto, a frase (a) é (parece) mais expressiva no que respeita a resolução de agir futuramente, talvez porque «ficar em» significa muitas vezes permanência.