Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
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Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A palavra pouco pode inserir-se em diferentes classes/subclasses, como a dos quantificadores existenciais, a dos pronomes indefinidos, a dos advérbios de quantidade e grau ou até a dos nomes. Além disso, o dicionário prevê ainda que este vocábulo seja um adjetivo. Em que contextos? Nesse caso, como distinguir dos quantificadores? Obrigado pela vossa ajuda!

Resposta:

Efetivamente a palavra pouco pode pertencer a várias classes de palavras. Só a análise em contexto frásico permite determinar a classe de palavras a que este vocábulo pertence. Por isso, analisemos os seguintes exemplos: 

(1) «Poucos livros foram vendidos.»

(2) «Poucos vieram à festa.»

(3) «Ela pouco falou ao longo do dia.»

(4) «A comida servida era pouca.» 

Em (1) o termo «poucos» é um quantificador, visto que, incidindo sobre o nome livros, indica a quantidade desse conjunto que foi vendida. Já em (2), a palavra «poucos» pertence à classe dos pronomes indefinidos porque corresponde ao uso pronominal de um quantificador. Em (3), «pouco» é um advérbio, uma vez que apresenta informação sobre a quantidade da situação descrita como «falar ao longo do dia». Por fim, em (4) «pouco» é um adjetivo, que surge em posição predicativa, uma vez que predica sobre o nome, concordando com este em género e número. Note-se que, na qualidade de adjetivo e de advérbio, pouco é graduável em grau (pouquíssimo). Contudo, salienta-se que o uso de pouco como adjetivo parece mais residual e, refira-se, mantém o valor de quantificação, que, neste caso, incide sobre o sujeito. 

A derivação no contexto do Português <br> como Língua Estrangeira
A importância do seu ensino

A importância do ensino da morfologia derivacional no contexto do Português como Língua Estrangeira (PLE) é o tema de uma reflexão de Inês Gama, que considera que «no ensino da formação de palavras, cabe ao professor dotar os aprendentes de estratégias que lhes permitam entender o funcionamento do léxico da língua, nomeadamente os processos que intervêm na sua criação, como é o caso da derivação».

Pergunta:

'Passei a encontrar a expressão humano como nome em vez de adjetivo, significando «ser humano».

É correto ou mais uma importação do inglês?

Resposta:

Está correta a utilização do termo humano enquanto nome, embora possa também ser usado como adjetivo. 

Segundo o dicionário online Infopédia, a palavra humano pode ser usada como adjetivo com o sentido «do homem ou a ele relativo» ou ainda com o significado de «bondoso, compassivo», como por exemplo: 

(1) O João teve uma atitude humana. 

O mesmo dicionário também informa que este vocábulo pode ser utilizado como nome coletivo e com a aceção de «os homens». No Corpus do Português, de Mark Davis, é possível identificar vários exemplos do uso do termo humano enquanto nome, como ilustra a frase seguinte presente na obra Zargueida da autoria de Francisco de Paula Medina e Vasconcelos e cuja publicação é de 1884: 

(2) «(...) Para bravo investir qualquer humano / Que por alli quizer passar insano». 

Quanto à sua origem, nada indica que seja uma importação do inglês, uma vez que é possível encontrar esta palavra com o mesmo significado de «seres humanos» em obras do século XIX, como se pode verificar no Corpus do Português. Além disso, etimologicamente, a palavra humano teve origem no vocábulo latino 

Pergunta:

Minhas dúvidas estão em volta de uma coisa que foi me ensinada no ensino fundamental e que eu diversas vezes presenciei: que, quando numa sala cheia de "garotas" e com somente um "garoto", os termos corretos a se dizer são sempre no masculino, por ex., «todos vocês».

Logo, se há mais de um gênero de pessoas num mesmo espaço, é obrigação do enunciador dizer os termos em masculino.

Isso não implica que o gênero masculino é também, em determinadas circunstâncias, o termo neutro da língua portuguesa?

Logo, mesmo me referindo a um grupo formado somente por não-binários e mulheres, o correto termo a usar é “eles”.

Então, o termo neutro da língua portuguesa, (pelo que eu entendo ser o “elus”), só pode ser usado para se referir a um grupo de não-binários, e não a todos os gêneros que forma o espectro?

Seria tudo isso correto, ou o uso do masculino, quando se fala com o público geral, é só um sinal do machismo/misoginia na língua portuguesa?

Resposta:

A pergunta foca vários aspetos e, por isso, exige uma resposta repartida que os aborde. 

De facto, o género masculino deve ser usado quando se pretende referir um grupo composto por homens, mulheres e, até mesmo, não-binários, uma vez que, de acordo com a gramática, no plural, as formas do masculino são entendidas como não marcadas, tal como afirmam Celso Cunha e Lindley Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo (p. 250). Por esta razão, embora a gramática tradicional não equacione diferentes géneros como o neutro (tal como ocorre no latim) ou o não-binário, o género masculino é a forma não marcada que denota referentes com géneros diferentes. 

Contudo, alguns apologistas da linguagem inclusiva optam por, na expressão escrita, recorrer a sinais como @ ou X quando se referem a um grupo composto por vários membros de diferentes géneros, como por exemplo: 

(1) Bom dia a tod@s

(2) Carxs alunxs

Todavia, dada a dificuldade em transpor o uso destes sinais para a oralidade, verifica-se também a opção pelo uso de expressões que recorrem a termos flexionados tanto no género masculino como no feminino, como por exemplo:

(3) Boa tarde, portugueses e portuguesas. 

É preciso ter em atenção que o género gramatical nada tem que ver com o género biológico, uma vez que, do ponto de vista gramatical, o género é uma categoria lexical usada para classificar os nomes (p. e., nomes do género masculino; nomes do género feminino; nomes comuns de dois, etc.), sendo que palavras de outras classes (p.e., ...

Variação e norma linguística
O ensino da norma-padrão e da variação linguística

«O ensino da língua, ao promover um conhecimento linguístico consciente, deve superar o saber falar e escrever e permitir uma reflexão sobre a complexa rede linguística de uma comunidade, uma vez que a escola não deve ser castradora da variação linguística

Neste artigo, Inês Gama reflete sobre a norma e variação linguística e a importância do seu ensino na escola, tendo em conta que qualquer língua é considerada um sistema heterogéneo, aberto e dinâmico, que se carateriza pela diversidade do seu uso pelos falantes.