Gonçalo Neves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Gonçalo Neves
Gonçalo Neves
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Tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a designação original utilizada na bula papal de reconhecimento de Afonso Henriques como rei de Portugal? A versão que vi na Internet não é minimamente legível.

Portucale? Portugalliae?

Pretendemos designar uma espécie de planta, e deve ser utilizado um adjectivo a partir do termo original. Há portucalensis, portugallicus.

Obrigado.

Resposta:

Na conhecida bula Manifestis probatum, pela qual o papa Alexandre III reconheceu, em 23 de maio de 1179, a autoridade régia de D. Afonso Henriques e a independência do novo reino de Portugal, não figura nenhum dos dois vocábulos (Portucale, Portugallia) aventados pelo nosso consulente. Neste documento, na verdade, o papa reconhece a D. Afonso Henriques o título de Rex Portugalensium («Rei dos Portugueses») e chama ao novo reino Regnum Portugalensium («Reino dos Portugueses»). Recorde-se que o latim recorre frequentemente ao etnónimo, em vez do respetivo topónimo, para enunciar um cargo ou função ou para indicar um país ou região.

O vocábulo Portugalensium («dos portugueses») é o genitivo plural do adjetivo Portugalensis («português»), e este último provém, mediante um processo de sufixação perfeitamente regular, do topónimo Portugal, que obviamente já estava em uso por essa data. José Pedro Machado explica, no seu dicionário onomástico etimológico1, que este topónimo provém de Portucale, «designação primitiva da cidade do Porto», e atesta as seguintes formas em documentos antigos: Portumcale (séc. V), Portucale (séc. V), Portocale (séc. VI, VII e IX), Portugali (séc. VII e VIII), Portugal(e) (922-995), Portukal (data provável: 1013) e, finalmente, Portugal (1041).

A forma Portugalia, mais tardia (séc. XII), aparece em moedas e em muitos documentos, para não falar dos famosos Portugaliae Monumenta Historica, cuja recolha e organização foi encomendada pela Acad...

Pergunta:

Gostaria de saber que grafia(s) existe(m) para o nome de dois escultores gregos de Creta. Eu estive a pesquisar, e a única coisa que achei foi uma fonte brasileira de 2006 que emprega "Dípinos" e "Escílis" (Santos, Rita de Cassia Coda dos. Exortação aos gregos: a helenização do cristianismo em Clemente de Alexandria. [S.l.]: UFMG, 2006), fora outras duas, creio eu portuguesas, que citam "Dipoeno" e "Scyllis", porém ambas são do século XIX, onde as grafias eram relativamente bem diferentes das atuais. Como a forma grega não aparece em nenhuma fonte em português, mesmo estando registrada em várias fontes famosas do inglês (como a Enciclopédia Britânica), fiquei na dúvida.

Resposta:

Os nomes destes escultores grafam-se Δίποινος e Σκύλλις em grego. A estes antropónimos helénicos correspondem Dipœnus (ou Dipoenus) e Scyllis em latim, respetivamente, formas usadas por Plínio e encontradiças nos melhores dicionários.

A grande questão é saber como aportuguesar estes nomes. Habitualmente, com ou sem razão, os nomes gregos chegam-nos por via do latim, e a sua transformação obedece a certas regras. De acordo com essas regras, Dipœnus habitualmente daria “Dipeno” em português, e Scyllis daria “Escílis” (caso a adaptação se fizesse por via do caso nominativo) ou “Escile” (caso a assimilação se baseasse no acusativo). Das duas formas possíveis deste segundo antropónimo (“Escílis” ou “Escile”), ambas defensáveis, creio que a primeira (“Escílis”) é preferível, por analogia com outros antropónimos do género (por exemplo, “Amarílis”) e até porque, convenhamos, tem um ar mais aristocrático...

As formas “Dípinos” e “Dipoeno”, citadas pelo consulente, não têm razão de ser, salvo melhor juízo. A primeira (“Dípinos”) pretende ser uma transliteração direta do nome grego, sem passar pelo crivo latino, mas a transliteração correta seria “Dípoinos”. É verdade que o ditongo οι se pronuncia [i] em grego moderno, mas essa evolução fonética normalmente não influencia a transliteração de nomes helénicos. A segunda (“Dipoeno”) é uma transliteração despropositada da forma latina, pois o ditongo œ (amiúde grafado oe) dá invariavelmente e em português (por exemplo, pœna- > pena).

Pergunta:

Nunca pensei que o imperativo latino salve me causasse tantas interrogações. Trata-se de uma forma verbal que funciona sintáctica e semanticamente como uma interjeição portuguesa de saudação inicial (exemplo-tipo: olá), o seu valor optativo emergindo notoriamente. Para meu grande espanto, o dicionário propõe as seguintes traduções salve, saúde e adeus. A meu ver, salve é uma interjeição de saudação inicial, enquanto saúde e adeus são interjeições de saudação final. Pois bem, como podem estas duas últimas servir como versão a um vocábulo que se utilizava como cumprimento em início de conversa?

N.B. – Não estando alheado das mutações linguísticas populares, devo confessar que tenho, recorrentemente, ouvido, da parte de falantes de meios mais rurais e/ou menos escolarizados, a interjeição adeus como cumprimento inicial, sobretudo quando se saúda uma pessoa de passagem, muito rapidamente, possivelmente sem contacto corporal (beijo, abraço, aperto de mão).

P.S. – Este tema faz-me referir ainda mais um aspecto, que já vi em discussões na Internet. São peculiares os títulos das duas orações «Ave Maria» e «Salve Rainha», quando ambas servem para invocar, cumprimentar…

Resposta:

Os romanos eram bastante práticos e diretos nas suas saudações, tal como, aliás, em muitos capítulos da vida social. Independentemente da hora do dia e do grau de formalidade que caracterizasse a relação entre quem saudava e quem recebia a saudação, valiam-se invariavelmente do verbo salvere, que quer dizer «estar bem, estar de boa saúde», «passar bem». Para cumprimentar apenas uma pessoa, diziam «salve!» (segunda pessoa do singular do imperativo do referido verbo), e, para cumprimentar várias, diziam «salvete!» (segunda pessoa do plural do imperativo). As formas «salve!» e «salvete!» correspondem, portanto, consoante o contexto e o grau de formalidade em questão, a «olá!», «viva!», «bom dia!», «boa tarde!» ou «boa noite!», para não falar do «oi!» brasileiro.

A forma do imperativo singular salve passou para português na qualidade de interjeição e está dicionarizada. Segundo o Dicionário Houaiss (edição eletrónica 1.0), esta interjeição «expressa saudação ou cumprimento». De acordo com outro dicionário abalizado (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2004), a mesma «usa-se para saudar ou cumprimentar». Não sei em que fonte o nosso consulente bebeu a informação de que «salve!”» em português, também poderia significar «adeus», mas estas duas obras de referência aparentemente não corroboram tal aceção...

Este vocábulo salve, aliás, parece-me pouco encontradiço na nossa língua: não me lembro de o ter ouvido ou lido seja onde for, a não ser no nome da conhecida oração católica salve-rainha ou em textos literários, sobretudo em traduções do latim.

Além de «salve!» e «salvete!», os romanos também se socorriam dos vocábulos «ave!» e «avete!», igualmente imperativos verbais, p...

Pergunta:

Em leitura de informações sobre a Dalmácia romana me deparei com cinco topônimos (Senia, Vegium, Aenona, Aequum, Oneum) que não estou encontrando uma forma aportuguesada. Como o latim tem regras relativamente bem fixas para transliteração, pensei que, na ordem, estes topônimos poderiam ser grafados como Sênia, Végio, Enona, Équo (à semelhança de os équos) e Oneu/Oneia (à semelhança de Dorileu/Dorileia e Lilibeu/Lilibeia). Estas formas seriam possíveis nestes casos, ou será que alguma fonte sugere outra forma?

Resposta:

Os topónimos referidos pelo consulente não são encontradiços em dicionários. No maior dicionário latino-português que pude consultar, o monumental Saraiva1, figuram apenas os três primeiros (Senia, Vegium, Ænona), seguidos das formas aportuguesadas propostas pelo consulente, embora sem o acento gráfico nas duas primeiras, por se tratar de uma obra redigida em 1889, altura em que os esdrúxulos se grafavam sem acento: Senia, Vegio, Enona.

Num dicionário latino-francês de grande monta2, além dos três topónimos já referidos, figura ainda Æquum, embora o autor remeta para a forma alternativa Æquitas. No entanto, nenhum dos quatro topónimos está “traduzido”, ou seja, o autor limita-se a indicar de que topónimos se trata, sem arriscar qualquer forma afrancesada.

Fica para o fim o topónimo Oneum, que não consegui encontrar em nenhum dicionário. O aportuguesamento proposto pelo consulente ("Oneu"/"Oneia") não me parece defensável, nem creio que se possa estabelecer qualquer paralelismo com Dorileu. Este último topónimo, na verdade, deriva do latim Dorylæum, e este do grego Δορύλαιον. Sendo o ditongo æ longo por natureza, a evolução natural de Dorylæum para português seria sempre Dorileu, e nunca *Doríleo. No caso de Oneum, é expectável que a vogal e seja breve, pelo que a evolução natural deste topónimo para português seria Óneo, à semelhança de óleo (< oleum), e não *Oneu. No entanto, por vezes, há exceções e surpresas, pelo que seria indispensável a consulta de um dicionário que apresentasse a forma Oneum e abonasse as respetivas quantidades vocálicas. Por isso mesmo, parece-me preferível não apo...

Pergunta:

Qual é o signiifcado de sic?

Resposta:

Sic é um advérbio latino que significa «assim», «deste modo», «desta forma». Por exemplo:

«Sic itur ad astra» («É assim que se chega ao céu»).

«Sic transit gloria mundi» («É assim que passa a glória mundana»).

Ao passar para as línguas novilatinas, este advérbio revestiu-se de novo matiz, pois deu origem a sim em português, si em francês e em catalão, em castelhano e em italiano. No entanto, é provável que este uso de sic como advérbio afirmativo já corresse em latim vulgar, pois conhece-se pelo menos um exemplo deste uso nas comédias de Públio Terêncio (195/185-159 a. C.). No caso do romeno, a matização foi ainda mais longe, pois de sic deriva a copulativa și* («e»).

Seja como for, o advérbio sic resistiu à voragem do tempo e ainda se usa em muitas línguas modernas, português incluído. Pospõe-se entre parênteses e serve para indicar, numa citação, que a palavra ou a expressão antecedentes, por muito estranhas ou erradas que possam parecer, se encontram tal e qual no texto original. Por vezes, quando o erro é crasso, o citador até apõe um ponto de exclamação (ou vários...) ao termo latino, para deixar bem vincado que aquele despautério é da responsabilidade do autor do texto original ou se deve à malícia de qualquer gralha desplumada. No fundo, ao escrever sic numa citação, é como se escrevêssemos sic scripsit, que é como quem diz «foi assim que ele escreveu (e não eu!)».

Parece-me haver certa tendência para os citadores se servirem do sic como arma de arremesso, como quem insinua inépcia do citado e, por contraste, argúcia da sua parte, quando a verdade é que nada nos obriga a reproduzir, numa citação sem caráter c...