Gonçalo Neves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Gonçalo Neves
Gonçalo Neves
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Tradutor de espanhol, francês, inglês, italiano e latim; especialista em Interlinguística, com obra publicada (poesia, contos, estudos linguísticos) em três línguas planeadas (ido, esperanto, interlíngua) em várias revistas estrangeiras; foi professor de Espanhol (curso de tradução) e Português para Estrangeiros no Instituto Espanhol de Línguas; trabalhou como lexicógrafo na Texto Editores; licenciado em fitopatologia pela Universidade Técnica de Lisboa.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho uma curiosidade quanto a uma frase em latim.

Vi no Dicionário da Língua Portuguesa, 6.ª edição, Dicionários Editora, da Porto Editora, a seguinte frase: «vincit omnia veritas» (loc. lat. cf. Cícero, de Or.3, 215), «a verdade vence tudo».

Numa pesquisa mais completa, descobri que a mesma frase pode ser aplicada ao amor (o amor vence tudo), no entanto, quando a isso se aplica a construção frásica é alterada para «Amor vincit omnia.»

Também descobri a mesma frase, mas escrita nesta forma: «Veritas vincit omnia» ou até «Omnia vincit veritas». Gostaria de saber, se possível, qual é a sua forma correcta.

Resposta:

Em primeiro lugar, importa referir que enferma de erro o Dicionário da Língua Portuguesa referido pelo consulente. De facto, na obra e no trecho indicados (De oratore 3, 215), Cícero não escreveu vincit omnia veritas («a verdade supera tudo») mas in omni re vincit imitationem veritas («a verdade supera o fingimento em qualquer circunstância»).

No entanto, a frase citada pelo consulente era um ditado muito frequente em latim, que corria nas seguintes variantes:

Veritas omnia vincit («A verdade tudo supera»)

Vincit omnia veritas («Supera tudo a verdade»)

Omnia vincit veritas («Tudo supera a verdade»)

 A segunda variante foi adotada como mote pela Augusta State University (Jórgia, Estados Unidos), que em 2012 se fundiu com a Georgia Regents University.

 A propósito da terceira variante, refira-se a ambiguidade da versão portuguesa apresentada, pois só o contexto poderá indicar se a verdade supera tudo ou é superada por tudo, ao passo que o original latino é perfeitamente claro, já que o substantivo veritas, por se encontrar no caso nominativo, funciona inequivocamente como sujeito da proposição.

 São também perfeitamente possíveis e integralmente corretas as seguintes variantes, apesar de não as ter encontrado dicionarizadas:

 Veritas vincit omnia («A verdade supera tudo...

Pergunta:

Em inglês, a palavra logodaedalus refere-se a uma espécie de sofista. Um habilidoso ou artífice no uso das palavras. Existe, em português, logodédalo? Não sendo o caso, estaria bem formada tal palavra?

Resposta:

O termo inglês logodaedalus provém do grego λογοδαίδαλος, nome com que Platão, no célebre diálogo Fedro, pela boca de Sócrates, descreve ironicamente o sofista Teodoro de Bizâncio. Este vocábulo grego é composto de λόγος («palavra») e δαίδαλος («trabalhado com arte»), adjetivo que, tornado antropónimo (Δαίδαλος), designa a lendária figura de Dédalo, notável arquiteto, inventor e escultor ateniense. O termo empregado por Platão refere-se, portanto, a alguém que usa da palavra com a mesma habilidade e perícia com que Dédalo manuseava o metal e outros materiais que transformava em obras de arte.

Não encontro o vocábulo logodédalo em dicionários portugueses, nem a respetiva forma latina (logodædalus) em léxicos latinos, mas isso não significa que não se possa usar, pois está corretamente formado e até ostenta um “parente” dicionarizado. Trata-se de logodedália, que significa, segundo o Dicionário Houaiss, «afetação do estilo ou da linguagem». Este vocábulo provém do grego λογοδαιδαλία, que se refere à arte de adornar um discurso. Ou seja, a logodedália é a arte do logodédalo.

Aliás, se virmos bem as coisas, até seria conveniente darmos foros de cidadania a este vocábulo grego, pois torna-se difícil, recorrendo a termos lusos ou de outras línguas, traduzir com precisão a ideia que veicula. Prova disso é a disparidade de traduções de λογοδαίδαλος que aparecem nas diversas versões do Fedro que pude consultar. Eis alguns exemplos.

Numa ve...

Pergunta:

Creio que eglantina será a antiga designação das roseiras-bravas. É mesmo?

Agradecia a vossa ajuda.

Resposta:

O antropónimo Eglantina, pouco encontradiço entre nós, provém do francês Églantine, que é nome de flor tornado antropónimo. A églantine é a flor do églantier, termo que, em francês, designa várias espécies de roseiras-bravas, sobretudo a Rosa canina, conhecida entre nós por rosa-canina e também por mosqueta, mosqueta-silvestre, rosa-bandalha, rosa-de-cão, rosa-mijona, rosa-primitiva, roseira-canina, silva-macha e silvão.

A rosa-brava mais famosa dos tempos hodiernos é porventura Eglantina Zingg, atriz venezuelana que deu brado há alguns anos, quando apareceu em fotos ousadas com Haris Hilton, outra atriz assaz “colunável”, cujo nome já andou associado ao do “nosso” Cristiano Ronaldo...

Pergunta:

Eu e outros colegas meus da Wikipédia recentemente estivemos a discutir qual a melhor forma de grafarmos no português Ὀνομάγουλος, do nobre bizantino Βασίλειος [Basílio] Ὀνομάγουλος. Eu havia sugerido "Onomágulo", pois além de remover o ditongo "ou", também retira o "s" final, tal como em Paleólogo, e ao mesmo tempo preserva o acento grego. Porém, não acho, ao menos online, nenhuma fonte com tal acepção, havendo apenas algumas poucas fontes italianas para Onomagulo, e outras tantas em línguas variadas, em especial inglês, que usam transliterações mais literais (Onomagoulos) ou bem estrambólicas (Onomagulous). Dai a dúvida, é válido o uso de "Onomágulo", ou ao menos a variante italiana na ausência de uma outra melhor?

Resposta:

A questão levantada pelo consulente prende-se com a chamada romanização da língua grega, ou seja, com a representação, por meio do alfabeto latino, de palavras ou textos escritos em carateres gregos. Existem vários sistemas de romanização, consoante o idioma original (grego antigo ou grego moderno) e o objetivo da romanização (transliteração ou transcrição).

A transliteração é uma transposição grafémica que visa sobretudo permitir a recuperação da grafia original a partir do texto transliterado. No caso do grego antigo, existem basicamente dois sistemas: o tradicional, que se baseia nas transcrições latinas de palavras e textos gregos, e o científico, mais recente, que é totalmente reversível, ao contrário do sistema tradicional, pelo que pode considerar-se mais fiel. No entanto, as diferenças entre estes dois sistemas são mínimas, circunscrevendo-se apenas à representação de três sons consonânticos (ζ, κ e χ), da duração das vogais e dos dígrafos vocálicos.

A transcrição de palavras do grego antigo para português, bem como para as restantes línguas novilatinas, implica normalmente certa adaptação morfológica, a par da fonética. Por norma, os cultismos gregos usados em português são transcritos e não transliterados. Embora existam normas gerais de transcrição, baseadas sobretudo nas transcrições latinas, há palavras, geralmente de uso frequente, que seguiram outro sistema ou via de transcrição.

No caso em apreço, a romanização do antropónimo Ὀνομάγουλος poderá fazer-se de três formas diferentes:

Transliteração tradicional: Onomágulos
Transliteração científica: Onomágoulos
Transcrição portuguesa: Onomágulo

 

Como termo de comparação, apresento também a romanização do nome...

Pergunta:

Preciso de usar o termo "manticora". Fico na dúvida se é "manticora" ou "mantícora".

Qual a vossa opinião?

Obrigado.

Resposta:

Este termo refere-se a um ser mitológico de origem persa. Dizem os etimologistas que o nome da criatura se formou em persa médio a partir dos vocábulos مارتیا (martya), «homem, ser humano», e خوار (xwar), «comer», pelo que o seu significado literal seria «devorador de homens».

Desconheço qual a acentuação correta deste nome em persa médio, ou mesmo do seu equivalente em persa moderno (مانتیکور), o qual, aliás, não provém diretamente daquele, mas sim do termo correspondente em latim ou em grego. Seja como for, o vocábulo chegou-nos por via do latim mantichoras, que por sua vez é uma adaptação do grego μαντιχώρας, sendo esta forma uma variante de μαρτιχόρας, que descende diretamente do persa médio. Em grego, como pode constatar-se pela colocação do acento gráfico, o vocábulo é paroxítono ou grave, ou seja, tem acento tónico na penúltima sílaba. O vocábulo latino, no entanto, de acordo com os melhores dicionários, tem o breve (mantichŏras), pelo que é esdrúxulo ou proparoxítono, ou seja, tem acento tónico na antepenúltima sílaba.

Na evolução do latim para português, ocorre por vezes deslocação do acento tónico. Por exemplo, ídolo é uma palavra esdrúxula em português, mas o vocábulo latino que lhe deu origem (idōlum) é grave. No caso em apreço, trata-se de um termo que não encontro dicionarizado. Na ausência de tal abonação, creio que deve dar-se preferência à acentuação tónica que o vocábulo tinha em latim, até porque se trata de termo erudito. Por isso mesmo, julgo ser preferível pronunciar-se “mantícora”, com acento tónico na antepenúltima sílaba.

Fazendo uma pesquisa não exaustiva na Internet, depararam-se-me inúmeras páginas em português com referências a esta criatura mitológica, nas quais predomina a grafia mantícora, que indica acentuação propa...