Este termo refere-se a um ser mitológico de origem persa. Dizem os etimologistas que o nome da criatura se formou em persa médio a partir dos vocábulos مارتیا (martya), «homem, ser humano», e خوار (xwar), «comer», pelo que o seu significado literal seria «devorador de homens».
Desconheço qual a acentuação correta deste nome em persa médio, ou mesmo do seu equivalente em persa moderno (مانتیکور), o qual, aliás, não provém diretamente daquele, mas sim do termo correspondente em latim ou em grego. Seja como for, o vocábulo chegou-nos por via do latim mantichoras, que por sua vez é uma adaptação do grego μαντιχώρας, sendo esta forma uma variante de μαρτιχόρας, que descende diretamente do persa médio. Em grego, como pode constatar-se pela colocação do acento gráfico, o vocábulo é paroxítono ou grave, ou seja, tem acento tónico na penúltima sílaba. O vocábulo latino, no entanto, de acordo com os melhores dicionários, tem o breve (mantichŏras), pelo que é esdrúxulo ou proparoxítono, ou seja, tem acento tónico na antepenúltima sílaba.
Na evolução do latim para português, ocorre por vezes deslocação do acento tónico. Por exemplo, ídolo é uma palavra esdrúxula em português, mas o vocábulo latino que lhe deu origem (idōlum) é grave. No caso em apreço, trata-se de um termo que não encontro dicionarizado. Na ausência de tal abonação, creio que deve dar-se preferência à acentuação tónica que o vocábulo tinha em latim, até porque se trata de termo erudito. Por isso mesmo, julgo ser preferível pronunciar-se “mantícora”, com acento tónico na antepenúltima sílaba.
Fazendo uma pesquisa não exaustiva na Internet, depararam-se-me inúmeras páginas em português com referências a esta criatura mitológica, nas quais predomina a grafia mantícora, que indica acentuação proparoxítona. É também esta a pronúncia que se pode escutar no sítio Forvo, onde se coligem ficheiros áudio com a pronúncia de mais de dois milhões de palavras em 318 idiomas.
Ainda a respeito deste termo, e também por falta de dicionarização, há outro aspeto que pode suscitar dúvidas, e que tem que ver com o seu género. Era masculino em grego, mas em latim, tanto quanto consegui apurar, existem apenas duas abonações em textos de Plínio, e nenhuma delas permite descortinar o género. No abalizado dicionário latino-francês de Félix Gaffiot, o termo figura como masculino, quiçá por via do grego, mas noutros dicionários latinos é-lhe atribuído o género feminino. Em português, na referida pesquisa internética, verifiquei que o vocábulo é predominantemente usado com o género feminino.
O que ficou exposto anteriormente parte do pressuposto de que a pergunta do consulente versava sobre a referida criatura mitológica de origem persa. No entanto, existe um género de coleópteros africanos da família dos carabídeos cujo nome latino é precisamente Manticora. Este termo científico foi cunhado pelo zoólogo dinamarquês Johan Christian Fabricius (1745-1808), que o incluiu no primeiro tomo da obra Species insectorum; exhibentes eorum differentias specificas, synonyma, auctorum, loca natalia, metamorphosin ediectis observationibus, descriptionibus, publicada na Alemanha em 1781. Nesta obra, na página VI da introdução, Fabricius anuncia que Genera etiam nova addidi pauca («Acrescentei também alguns géneros novos») e dá uma pequena lista exemplificativa, na qual figura precisamente Manticora. Já no corpo da obra aparece, nas páginas 320 e 321, a descrição completa do novo género, embora sem qualquer explicação sobre a origem do nome. É possível que este termo provenha de mantichora (uma variante de mantichoras, também abonada em dicionários latinos), mas não encontrei nenhuma abonação a este respeito.
Numa edição do monumental Lexicon totius latinitatis, da autoria do filólogo italiano Egidio Forcellini (1688-1768), publicada em 1775 e reimpressa em 1940, figura como entrada a forma mantichora (com o género feminino), com indicação da variante mantichoras, mas num apêndice da mesma obra, publicado em 1828, consta também a forma manticora (sem h), que remete para mantichora. Embora a referida obra de Fabricius seja anterior, é possível que, já na altura, circulasse também esta variante sem h, o que poderia indiciar uma opção consciente do eminente zoólogo dinamarquês, que certamente sabia latim suficiente para não se enganar na grafia do vocábulo. Seja como for, o facto de este inseto apresentar mandíbulas conspícuas e de, no folclore africano, estar associado à prática do mal poderá, pelo menos com alguma dose de especulação, afiançar a hipótese de Fabricius se ter baseado no nome da fabulosa criatura para cunhar este termo científico.
É curioso verificar que, muito recentemente, um consulente do Centro Virtual Cervantes (uma espécie de Ciberdúvidas castelhano) mostrou a sua admiração pelo facto de o famoso dicionário da Real Academia Espanhola não abonar este vocábulo. Creio que será frutífero mencionar aqui a resposta que foi dada a este consulente.
Refira-se que, nesta resposta, o vocábulo mantícora é usado no género feminino e com acentuação esdrúxula. O consulente menciona igualmente o facto de o vocábulo aparecer numa tradução espanhola de um romance de Júlio Verne (1828-1905). Trata-se da obra Un Capitaine de quinze ans, publicada pela primeira vez em 1878. Encontrei em linha duas versões espanholas, ambas sob o título Un capitán de quince años: uma delas usa o vocábulo manticora (ou seja, grave) no masculino, enquanto outra prefere mantícora (ou seja, esdrúxulo) no feminino. Existe pelo menos uma tradução portuguesa, da autoria de Pedro Guilherme dos Santos Dinis, dada à estampa pela Bertrand em 1982 sob o título Um herói de quinze anos, na qual o inseto aparece como nome feminino e paroxítono («a manticora»). Parece, pois, que o uso ainda não se fixou claramente...