Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Diz o prof. Napoleão M. de Almeida, no §402, B de sua Gramática Metódica, o seguinte:

«Os verbos pronominais essenciais muito se aproximam dos verbos intransitivos, uma vez que exprimem ação que não pode passar para um objeto.»

Ora, se ambos os tipos de verbos indicam que a ação fica restrita ao sujeito, que diferença há entre eles, além de um indicar isso mediante pronome oblíquo da mesma pessoa que o sujeito (e.g.: Eu me queixeiTu te arrependesteEle se orgulha), e o outro não indicar isso de modo algum (e.g.: Eu corriTu saísteO pássaro voou)?

Obrigado

Resposta:

A nomenclatura «verbo pronominal essencial»* diz respeito à natureza formal, morfológica do verbo. Já a nomenclatura «verbo intransitivo» diz respeito à natureza sintática do verbo.

Logo, um verbo pode ser pronominal e não ser intransitivo (Ela se queixou da rotina), pode ser intransitivo sem ser pronominal (Ele acordou cedo) e pode ser pronominal intransitivo (Tristemente o menino afogou-se).

Logo, nem sempre um verbo pronominal essencial será transitivo, podendo ser intransitivo, de modo a não exigir um complemento, como em «A árvore partiu-se», «O homem se levantou», «O fiel ajoelhou-se», «Enfim, o aluno se concentrou», todos pronominais intransitivos.

Sempre às ordens!

 

* Por ser brasileiro o consulente, usou-se na resposta a nomenclatura gramatical do Brasil.

Pergunta:

Nas orações a seguir, os termos aporte e instrumento ficam mesmo no singular? Qual a explicação?

1. As ideias da análise descritiva serão assumidas como aporte para a verificação aqui realizada.

2. Os passos descritos por Freitas (2015) serão instrumento para nossa análise.

Obrigada.

Resposta:

Quando se usa um substantivo com valor genérico ou de inteireza, sua forma no singular tende a dispensar o determinante artigo indefinido ou definido.

 No entanto, por razões estilísticas de ênfase ou clareza, as frases poderiam ser reescritas de forma equivalente a estas:

 1. As ideias da análise descritiva serão assumidas como um aporte (ou o aporte) para a verificação aqui realizada.

 2. Os passos descritos por Freitas (2015) serão um instrumento (ou o instrumento) para nossa análise.

 Sendo assim, as frases originais da consulente estão corretas. Sempre às ordens!

«O mesmo», uma jabuticaba só nossa
Um uso condenado no Brasil

«Parece que o estrago está feito. O estigma sobre [«o mesmo»] é tão grande e vem de todos os lados que o mesmo nem consegue mais se defender» – apontamento do gramático brasileiro Fernando Pestana sobre a censura normativa que no Brasil recai sobre o uso anafórico de «o mesmo»*, em frases como «antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo está parado neste andar». 

Texto publicado em 27 de novembro de 2024 no mural do gramático brasileiro Fernando Pestana no Facebook e aqui transcrito com a devida vénia.

N. E. – A jabuticaba ou jaboticaba é uma fruta característica do Brasil, e o seu nome é usado metaforicamente para referir alguma coisa que só existe ou acontece no referido país (cf. "Jabuticaba", Wikipédia).

 

Pergunta:

Lendo Os Maias, deparei-me com este uso da crase:

«Isolou-se então – sem fechar todavia a sua bolsa, donde saíam às cinquenta, às cem moedas...»

O contexto: o rapaz se isolou, mas continuou a fazer caridades.

O uso dessa crase em «às cinquenta» e «às cem» seria análogo àquele da expressão «às pressas», «às escondidas» ou «aos montes» (masc.), como um advérbio?

«Saíam moedas aos montes.»

Resposta:

A leitura do consulente está correta.

Vale dizer que o sujeito de «saíam» é «moedas». Pondo o trecho da frase na ordem direta, temos: «Isolou-se então – sem fechar todavia a sua bolsa, donde moedas saíam às cinquenta, às cem...».

Logo, a crase (preposição a + artigo as) em «às cinquenta (moedas)», «às cem (moedas)» é da mesma natureza estrutural da locução adverbial «aos montes», «aos borbotões» — também o sentido é razoavelmente semelhante ao dessas expressões.

Por regra, as locuções adverbiais de núcleo feminino iniciadas por a recebem acento grave, pelo que se justifica o acento empregado por Eça de Queirós.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Na frase «Ela não me deixou expor nem um pensamento», o termo «nem um» equivale a sequer?

Em sendo, qual a classe gramatical de «nem um»? Qual a função sintática do termo «nem um»?

Obrigado.

Resposta:

Apesar de a tradição gramatical (em geral) não explicar que o advérbio também pode modificar outras classes gramaticais além do verbo, adjetivo ou advérbio, o fato é que ele pode, sim.

O gramático Evanildo Bechara, em seu livro Novo Dicionário de Dúvidas da Língua Portuguesa, sob o verbete "nenhum, nem um", classifica nem como advérbio e um como numeral.

Logo, sintaticamente, nem funciona como adjunto adverbial modificando o numeral adjetivo* um, que, por sua vez, funciona sintaticamente como adjunto adnominal do núcleo nominal («pensamento») do objeto direto «nem um pensamento».

Quanto a «nem um» equivaler a sequer, ensina o gramático normativo Domingos P. Cegalla, em seu Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, sob o verbete "nem um(a), nenhum(a)", que «nem um» equivale a «sequer um».

Também sob o verbete sequer (equivalente de «ao menos, pelo menos«), em concordância com as lições de Napoleão Mendes de Almeida em seu Dicionário de Questões Vernáculas, diz Cegalla no mesmo livro citado acima:

«1. Usa-se mais frequentemente em frases negativas: Na praça não havia sequer um banco. / Ele nem sequer se dignou de responder à minha solicitação. / “Não tentou esconder as lágrimas, sequer secá-las.” (Vilma Guimarães Rosa, Carisma, p. 100)