Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O verbo demorar pode se tornar impessoal quando estiver associado à passagem do tempo?

Qual das suas orações abaixo está correta?

Demora-se meses para terminar um projeto como este.

Demoram-se meses para terminar um projeto como este.

Obrigado.

Resposta:

Após análise em diferentes gramáticas brasileiras e dicionários de regência, não se constatou a classificação «verbo impessoal» para o verbo demorar.

Assim, é correto analisar sintaticamente a frase «Demora-se meses para terminar um projeto» da seguinte maneira*:

– O se, em «Demora-se» é uma partícula de indeterminação do sujeito, de modo que o verbo (intransitivo) fica obrigatoriamente na 3.ª pessoa do singular.

– O termo meses é um adjunto adverbial de tempo.

– A oração «para terminar um projeto» é subordinada adverbial final; o sujeito de terminar é igualmente indeterminado.

Sempre às ordens!

*Visto ser o consulente do Brasil, adota-se aqui a análise e a nomenclatura da tradição gramatical brasileira.

 

Pergunta:

Sabemos que «através de» deve ser usado somente no sentido de transversal.

Por exemplo: «vi a criança através da janela».

Mas tive uma dúvida, então eu gostaria de saber se é correto se dizer:

«Isso nos convida a louvar ao Senhor através da música.»

Pergunto porque subentende-se que o som atravessa o aparelho seja rádio, seja TV ou outro.

Muito obrigada!

Resposta:

Esta afirmação de que só se deve usar «através de» com o sentido de transversalidade faz parte de lições gramaticais antigas – infelizmente ainda encontradas em salas de aula. No entanto, a língua muda, e com isso novos usos passam a fazer parte da norma culta: esse é um deles, em que «através de» se tornou sinônimo de «por meio de», a ponto de serem hoje intercambiáveis.

Se me permite, terei de estender-me na resposta. Veja cinco motivos para pôr termo a esse «mito gramatical».

1. A língua muda, inclusive a língua culta.

Desde 1981, um dos gramáticos mais puristas da Língua Portuguesa (Napoleão Mendes de Almeida) já havia dito em seu dicionário, sob o verbete "Através de":

«Se constitui erro empregar ATRAVÉS DE para indicar o agente da passiva (O gol foi feito através do jogador Tal), não se deve por outro lado cair no exagero oposto de julgar que a locução só é possível quando significa "de um lado para o outro", "de lado a lado" (Passou através da multidão – Passou a espada através do corpo). NÃO VEMOS ERRO em: "A palavra veio-nos do latim ATRAVÉS DO francês", como não vemos na passagem de Herculano: "ATRAVÉS desses lábios inocentes murmuram durante alguns instantes as orações submissas". Há aí metáfora...» (destaques meus)

2. Esse uso de ATRAVÉS DE como sinônimo de POR MEIO DE é encontrado na redação de grandes gramáticos antigos (Júlio Ribeiro, Maximino Maciel, João Ribeiro, Alfredo Gomes etc.) e modernos (Evanildo Bechara, Celso Cunha, Domingos Paschoal Cegalla, Celso Pedro Luft, etc.).

3. Além disso, muitos escritores da nossa literatura (antigos e modernos) fizeram e fazem uso de ATRAVÉS DE como sinônimo de POR MEIO DE. Eis alguns nomes: Machado de Assis, Olavo Bilac, Euclides da Cunha, Fernando Pessoa, Alberto Mussa, Luis Fernando Veríssimo, Rubem Fonseca, Chico Buar...

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