Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Pelo que vejo no vosso artigo, a regra é usar sempre que nos referimos a períodos temporais, mas a dúvida que eu tenho prende-se com a seguinte fase:

«O carro fez a revisão à 5000 km», ou «O carro fez a revisão há 5000 km»?

Uma vez que km não são uma medida de tempo/período, mas ao mesmo tempo utilizo a unidade km para dizer que algo foi feito no passado.

Resposta:

De facto, o verbo haver «emprega-se como impessoal, isto é, sem sujeito, quando significa existir ou quando indica tempo decorrido, casos em que se conjuga tão-somente na 3.ª pessoa do singular» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 534).

Ora, na frase que nos apresenta, está implícita a ideia de tempo decorrido, apesar de o mesmo estar expresso através do número de quilómetros feitos pelo carro. E não há dúvida de que o tempo, para os carros, é marcado pelos quilómetros que fizerem. Enquanto, para os seres vivos, o tempo é medido pelos anos (meses, dias, horas, minutos, segundos), para um veículo, destinado a cumprir distâncias, a tabela de medida temporal corresponde à do percurso que realizar.

Repare-se que se diz:

«Aquela pessoa tem 30 anos.»

«Este carro tem 30 000 km.»

«Venha cá à consulta daqui a seis meses.»

«Traga o carro aos 30 000 km.»

Por isso, indicando o tempo específico do carro, o verbo haver deve ocorrer nessa frase: «O carro fez a revisão há 5000 km.»

Pergunta:

Ouve-se, constantemente, a interrogação «está à espera do quê?».

Não deveria ser «está à espera de quê?»?

A visita diária a esta página faz parte dos meus costumes. Felicito-vos pelo excelente trabalho na defesa do património linguístico português.

Resposta:

Agradecemos o apreço em que tem o nosso trabalho, esperando que possamos continuar a corresponder às expetativas dos que se nos dirigem.

A dúvida do consulente deve-se ao facto de se tratar de um caso em que é usada uma das formas tónicas do pronome interrogativo (quê, o quê), o que implica «a posição final dos constituintes interrogativos» (Mira Mateus et alli, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003, p. 474).

Ora, se se alterasse a ordem das palavras dessa frase interrogativa, o enunciado ficaria deste modo:

«De que é que estás à espera?» (e não, *«de o que é que estás à espera?»)

Portanto, ao optar-se pela forma tónica do constituinte interrogativo, apercebemo-nos de que a forma correta é:

 

«Está à espera de quê?» (e não *«está à espera do quê?»)

Do mesmo modo, poder-se-ia dizer «Está à espera de quem?» ou «De quem está à espera?».

Nota: Diferente seria o caso de uma frase como «Queres o quê?» (e não, *«Queres quê?»), pois a interrogativa na ordem direta seria «O que queres?» ou «O que é que tu queres?» (e não *«Que queres?»).

* = Agramatical.

Pergunta:

Gostaria de saber se é gramaticalmente correto dizer: «havia havido», pois tenho ouvido demais por aí e isso cria em mim um ruído...

Resposta:

«Havia havido» é equivalente a «tinha havido», pois trata-se de duas formas igualmente legítimas do pretério mais-que-perfeito composto do verbo haver. De facto, talvez devido à repetição de sons da forma «havia havido», parece criar-se um eco que alerta a nossa sensibilidade em relação à língua, mas a verdade é que os verbos ter e haver são os verbos auxiliares usados para a formação dos tempos compostos. Empregam-se, por isso:

– com o particípio passado do verbo principal, para formar tempos compostos da voz ativa, denotadores de um facto acabado, repetido ou contínuo:

«Tenho feito exercícios.»
«Havíamos comprado livros.»

– com o infinitivo do verbo principal antecedido da preposição de, para exprimir, respetivamente, a obrigatoriedade ou o firme propósito de realizar o facto:

«Tenho de fazer exercícios.»
«Havemos de comprar livros.»

Repare-se que o uso dos verbos ter ou haver é facultativo na formação da grande maioria das formas compostas: do pretérito mais-que-perfeito [tinha/havido feito; tivesse/houvesse dito] e do futuro [terei/haverei pensado; tiver/houver vendido]] dos modos indicativo e conjuntivo; do condicional [teríamos/haveríamos criado], ou futuro do pretérito, do modo indicativo; do presente [tenha/haja discutido], do modo conjuntivo; do infinito impessoal [ter/haver escrito] e pessoal [termos/havermos vendido]; e do gerúndio [tendo/havendo partido].

Pergunta:

Na frase «Os períodos do peri- e do pós-operatório também decorreram sem complicações», a expressão «peri» deve ter hífen, ou não, sendo que se refere a peri-operatório?

Resposta:

Tal como acontece em construções como «Nem pró nem contra» e «prós e contras», em que os prefixos pró- e contra- se comportam como palavras autónomas, o mesmo se passa com o caso de peri- [prefixo de origem grega1].

Por isso, deverá escrever peri sem o hífen indicativo de prefixo, sempre que este termo ocorrer isoladamente em qualquer discurso, como é o caso da frase que nos apresentou:

«Os períodos peri e pós-operatório também decorreram sem complicações.»

Nota: É de referir que a palavra composta se escreve sem hífen, aglutinadamente: perioperatório.

1 Peri- faz parte da lista dos «principais prefixos de origem grega com as formas que assumem em português», segundo Cunha e Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 89), com o sentido de «posição ou movimento em torno: perímetro; perífrase» (idem).

Pergunta:

Com a mudança ortográfica, fico muitas vezes em dúvida em como escrever certas palavras.

Qual o correto: com hífen, ou sem hífen dobrando o r?

Semi-realista, ou semirrealista?

Resposta:

A forma correta é semirrealista.

Segundo a Base XVI (Do hífen nas formações por prefixação, recomposição e sufixação) do Acordo Ortográfico de 1990, «não se emprega o hífen nas formações em que o prefixo ou falso prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa por r ou s, devendo estas consoantes duplicar-se, prática aliás já generalizada em palavras deste tipo pertencentes aos domínios científico e técnico. Assim: antirreligioso, antissemita, contrarregra, contrassenha, cosseno, extrarregular, infrassom, minissaia, tal como biorritmo, biossatélite, eletrossiderurgia, microssistema, microrradiografia».

Nota: Os únicos casos em que se emprega o hífen1 nas palavras formadas com o prefixo semi- são quando o segundo elemento começa por h ou pela mesma vogal com que termina o primeiro elemento.

1 Segundo o AO, nas formações com prefixos (como, por exemplo: ante-, anti-, circum-,