Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Ao ser questionado sobre um conhecimento (adquirido naturalmente), eu respondi «sei, porque sei», querendo dizer que eu simplesmente sei, porque aprendi, sem esforço algum.

A minha colocação «sei, porque sei» foi recebida como erro da língua portuguesa. É uma redundância? Posso dizer?

Resposta:

A resposta que deu — «Sei, porque sei» —, querendo indicar que o que sabia o aprendera sem esforço, quase como se fosse uma aprendizagem feita naturalmente, é praticamente algo como o saber intuitivo (dos falantes) de que os linguistas falam quando se referem ao domínio da língua de uma criança que usa adequadamente as formas verbais, que faz as concordâncias, que constrói corretamente as frases do seu discurso sem ter aprendido (ainda) as regras da gramática.

Poder-se-á falar de um caso de redundância, mas — e embora repita a forma verbal sei —, o segundo sei, da oração causal, tem um sentido diferente do primeiro, o de «ter interiorizado», «ter apreendido», é a explicação para a certeza evidenciada com o primeiro sei. A estranheza provocada por esta resposta deve-se, decerto, ao facto de as pessoas a quem a dirigiu não terem compreendido bem o que queria dizer. Tudo teria sido mais óbvio se tivesse acrescentado os advérbios naturalmente ou intuitivamente.

Repare-se que a célebre frase de Sócrates «Sei que nada sei», a do paradoxo socrático, também causa estranheza quando ouvida pela primeira vez. E o que é, aparentemente, ilógico deixa de o ser logo que analisemos bem a frase.

Os jogos de palavras têm o poder de confundir quem ouve. Por isso, para que não haja equívocos (ou se não queremos que os haja), importa sermos mais explícitos e precisos, de modo a que não se possa correr o risco de sermos julgados de forma errada.

Pergunta:

No Sermão de Santo António aos Peixes, no primeiro capítulo, surgiu a seguinte pergunta: «Está o sal a cumprir a sua função? Justifica.»

Estou na dúvida, pois penso que é possível responder sim e não, uma vez que: «Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar.»

Agradeço o vosso esclarecimento.

Resposta:

Se a pergunta é «Está o sal a cumprir a sua função?» e a resposta é uma frase disjuntiva em que são apresentadas duas alternativas em que se nega o poder do sal — «Ou porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar» —, não há dúvida de que a resposta é negativa:

— se «o sal não salga», não provoca as alterações que deveria, não impede que se degradem, estraguem e apodreçam os elementos sobre os quais recai; portanto, não presta, não cumpre a sua função;

— se «a terra não se deixa salgar», é porque o sal não é suficientemente bom para exercer sobre a terra o seu poder e a sua ação sobre ela, transformando-a; portanto, não é capaz de cumprir a sua função.

Pergunta:

Na frase «Este relatório não propõe nada [sobre? de? a? em? …?] como economizar nos custos energéticos», qual a preposição que o verbo propor deve reger?

Resposta:

A forma da frase que nos apresenta não está dependente de questões de regência do verbo propor.

Neste caso, estamos perante uma ocorrência do verbo propor como verbo transitivo — «não propõe nada», o que poderia ser substituído por «não propõe soluções», «não propôs modificações», «não propõe alternativas» —, uma vez que significa «submeter a apreciação, alvitrar, sugerir».

Repare-se que, se colocarmos a frase numa outra ordem, verificaremos que a forma como a oração é iniciada não está relacionada com o verbo propor:

«Sobre como economizar nos custos energéticos, este relatório não propõe nada.»

«Relativamente a como economizar nos custos energéticos, este relatório não propõe nada.»

«No que diz respeito às formas como economizar nos custos energéticos, este relatório não propõe nada.»

«Quanto à questão sobre como economizar nos custos energéticos, este relatório não propõe nada.»

Portanto, uma vez que o que se pretende é introduzir uma oração em que se identifique o assunto ou o tema relativamente ao qual o relatório não propõe nada, bastar-nos-á usar uma das formas que designem essa realidade: sobre, relativamente a, acerca de, a respeito de, quanto a:

«Este relatório não propõe nada sobre como economizar nos custos energéticos.»

«Este relatório não propõe nada relativamente a como economizar nos custos energéticos.»

«Este relatório não propõe nada no que diz respeito às formas como econo...

Pergunta:

Surgiu uma dúvida sobre a contração da preposição em na seguinte frase:

«Ela vive em Porto Santo.»

Há quem defenda que se deve dizer «Ela vive no Porto Santo» (eu, por exemplo). No entanto, concordo que se diga «Ela vive em Machico».

Já tentei tirar a dúvida nas gramáticas, mas não fiquei elucidada. Gostaria que me explicassem.

Resposta:

Embora os nomes próprios sejam por definição individualizantes, o que deveria implicar a dispensa do artigo, «no curso da história da língua, razões diversas concorreram para que a norma lógica nem sempre fosse observada» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 225), como se tem verificado em alguns casos de topónimos (nomes de continentes, países, províncias, cidades, vilas, aldeias, localidades, etc.).

O uso da preposição em [ou a] e das contrações/crase no/na/nos [ou ao, à ou aos] antes dos topónimos está diretamente relacionado com a possibilidade (ou não) de os topónimos serem (ou não) acompanhados de artigo. Por sua vez, a presença do artigo decorre do facto de alguns nomes de cidades (vilas, aldeias e outras localidades) se terem formado a partir de substantivos/nomes comuns, razão pela qual conservam o artigo/determinante. São os casos de: a Guarda, o Porto, o Rio de Janeiro, a Figueira da Foz. (idem, p. 230).

Portanto, e à semelhança do que se passa com a cidade do Porto, se nos referirmos à cidade de Porto Santo, poder-se-á dizer:

«Ela vive no Porto Santo.»

«Eu não fico no Funchal. Fico no Porto Santo.»

«Eu vou ao Porto Santo.»

No entanto, tendo em conta que «não se usa o artigo definido com o nome da maioria das ilhas» (idem, p. 229), parece-nos mais correto usar-se somente a preposição em [ou a], se nos referirmos à ilha de Porto Santo:

«Eu passo as férias em Porto Santo.» (ilha)

«Eu fico ...

Pergunta:

Gostaria de tirar uma dúvida quanto à preposição a, quando utilizada em conjunto com o verbo ir

«Fui a Lisboa», ou «Fui à Lisboa»?. 
«Fui à Covilhã», ou «Fui a Covilhã»?
 
O acento agudo só será utilizado quando a cidade estiver no feminino? Qual a regra?

Resposta:

As formas corretas das frases são:

«Eu fui a Lisboa.»

«Eu fui à Covilhã1

Usa-se somente a preposição a, quando o nome da cidade (e de qualquer outro topónimo) não é originariamente um substantivo/nome comum, como é o caso de Lisboa.

Por sua vez, a ocorrência de à2 (contração/crase da preposição a com a forma feminina singular do artigo definido a) só é possível nos casos de «alguns nomes de cidades que se formaram de substantivos/nomes comuns [que] conservam o artigo» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 230).

Nota: Aconselha-se a leitura de um texto em linha sobre o uso da preposição em com os topónimos.

1 Segundo José Pedro Machado, em Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (Lisboa, Livros Horizonte, 2003), a origem de Covilhã «talvez esteja ligada a covil, em relação a minas e covas naturais». São exemplos de topónimos que devem ocorrer com artigo, por exemplo, em Portugal: «o Porto», «a Figueira da Foz», «a Covilhã», «a Póvoa de Varzim», «a Anadia».

2 Em à, o acento é grave, e não agudo. Este acento é utilizado, precisamente, apenas «para indicar a crase (contração) da preposição a com a forma feminina do artigo definido (a, as