Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Relativamente à frase «cheguei a uma semana», em vez de «cheguei há uma semana», neste último caso, creio que se trata claramente de um erro, que em Portugal nunca ocorreria pela simples razão de que a palavra a, sem acento, se lê no português europeu com o som "â", e não aberto, como me parece que são pronunciadas (quase) todas as vogais no Brasil.

Resposta:

A forma correta é «cheguei há uma semana», uma vez que se trata do uso do verbo haver para indicar tempo decorrido, tal como nos indicam Cunha e Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 534): «emprega-se como impessoal, isto é, sem sujeito, quando significa existir ou quando indica tempo decorrido, casos em que se conjuga tão-somente na 3.ª pessoa do singular», tal como se verifica nos exemplos que nos apresentam:

«Há dois dias que não vem trabalhar» (Luandino Vieira, Nós, os de Makulusu, 129).

«Tinha adoecido, havia dois dias» (Miguel Torga, Novos Contos da Montanha, 16).

Este erro é muito frequente em Portugal, como se pode verificar por várias respostas publicadas, pois confunde-se o uso desta forma do verbo haver com os casos de contração/crase da preposição a + a artigo — à — e, também, com o do artigo/determinante a.

Pergunta:

Muitas vezes, em textos de origem brasileira, deparo-me com a utilização da palavra parada, em situações em que em Portugal se usaria paragem. Por exemplo: «O trabalhador deu entrada no hospital após desmaio, tendo falecido no dia seguinte com parada cardíaca.»

Podemos usar qualquer uma das duas palavras indiscriminadamente, ou trata-se de um uso específico do português do Brasil? Ou é, simplesmente, um erro?

Resposta:

Os dois substantivos/nomes parada e paragem — derivados de parar (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado) — são sinónimos nos sentidos de «ação de parar; ato de deter, no decurso de uma viagem, de uma marcha; cessação, suspensão de uma atividade, interrupção, pausa ["parada cardíaca", o mesmo que "paragem cardíaca"]; lugar onde se para1 = estação, paragem [Brasil]» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010; Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001).

Portanto, estão corretas as duas formas, quando usadas para designar as realidades acima citadas. A única diferença reside no facto de, em Portugal e no Brasil, os falantes terem consagrado pelo uso formas distintas para dizerem o mesmo. É o que acontece com o uso do termo parada (no Brasil) para se designar paragem ou estação de autocarro/comboio, assim como na expressão «parada cardíaca».

Por sua vez, a palavra parada, para além dos significados já indicados, é também um termo militar («espaço no interior de um quartel onde se realizam formaturas, instruções, revistas, etc.; demonstração de força militar»), do desporto («defesa e um golpe») e do domínio do jogo («dinheiro que se arrisca, de cada vez, ao jogo; combate; luta»).

Nota: Importa referir outras informações sobre a realidade do português do Brasil, fornecidas pelo consultor brasileiro Luciano Eduardo Oliveira, assinalando que, no Brasil, autocarro é designad...

Pergunta:

Surgiu uma dúvida relativamente às diferenças, se é que existem, entre texto argumentativo e texto expositivo-argumentativo. Serão próximos ou, simplesmente, o mesmo?

Resposta:

Todo o texto argumentativo, enquanto «arte de falar de modo a convencer» (Aristóteles) que «desenvolve um raciocínio com o fim de defender ou repudiar uma tese ou ponto de vista para convencer um oponente, um interlocutor circunstancial ou a nós próprios» (Carlos Ceia, E-Dicionário de Termos Literários), tem uma parte expositiva como base da argumentação e da contra-argumentação, elementos essenciais para a construção da tese do seu autor. Por isso, um texto argumentativo é sempre um texto expositivo-argumentativo, uma outra nomenclatura não usada até há pouco.

Repare-se que o Programa de Português – 10.º, 11.º e 12.º anos (Cursos Científico-Humanísticos e Cursos Tecnológicos) apresenta como um dos conteúdos, a nível da escrita, vários tipos de texto: Resumo de textos informativo-expositivos, Resumo de textos expositivo-argumentativos, Textos de apreciação crítica, Textos expressivos e criativos, Textos argumentativos/expositivo-argumentativos, Textos de reflexão, Dissertação, etc. Ora, pela própria forma como esses tipos de texto nos são apresentados no programa se infere que se trata da mesma realidade, o que se pode comprovar pela indicação das estratégias e atividades comuns (idem, p. 49):

Textos argumentativos/expositivo-argumentativos
– estrutura canónica de base da argumentação: tese, antítese, síntese
– argumentação e contra-argumentação
– estratégias do sujeito
– alusões e subentendidos
– processos de influência sobre o destinatário
– tipos de argumentos
– progressão temática e discursiva
– conetores predominantes
– figuras de retórica.

Pergunta:

Deve dizer-se «elaborar um porta-fólio reflexivo de aprendizagem ou de/das aprendizagens»? Coloco esta questão por ser mediadora de um curso Efa e sentir a necessidade de informar devidamente os formandos.

Resposta:

Se se quiser referir à aprendizagem (na globalidade), deverá usar a preposição de — «de aprendizagem» —, mas se o seu objetivo for o de fazer referência a cada uma das aprendizagens que os formandos foram fazendo ao longo do curso, então, a forma correta será a que contempla a preposição de e o(s) artigo(s)/determinante(s) definidos a(s) — «da/das aprendizagem(ns)» —, evidenciando a particularidade de cada uma (das várias) aprendizagens interiorizadas (previstas/exigidas nos programas, e nas planificações, das diferentes disciplinas).

Repare-se que, à semelhança do que se passa com o caso apresentado pela consulente, é diferente o sentido dos conteúdos nucleares (enunciados no Programa) de Língua Portuguesa do 2.º e 3.º ciclos, de natureza globalizante — «Compreensão de Enunciados Orais», «Escrita para Apropriação de Técnicas e de Modelos e Aperfeiçoamento de Texto» — do da especificação das particularidades de cada um desses conteúdos na realização dos sumários, como por exemplo:

Exercícios de compreensão oral do conto O Tesouro (audição de uma gravação).

Atividades de leitura e de aperfeiçoamento dos textos apresentados à turma.

Exercícios de ordenação dos textos da ficha (desenvolvimento das técnicas de construção de texto).

Elaboração de cartas a partir dos modelos do...

Pergunta:

Com o segmento «a própria ciência, mais e melhor do que ninguém, poderá prever, evitar e diminuir os riscos» [Carlos Fiolhais (2011), A Ciência em Portugal, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, página 64], o enunciador recorre à modalidade epistémica, ou deôntica?

Resposta:

Na frase apresentada — «a própria ciência, mais e melhor do que ninguém, poderá prever, evitar e diminuir os riscos» — é expressa a ideia de possibilidade (em que se pode inferir, também, o valor de certeza devido à expressão apreciativa «mais e melhor do que ninguém»), razão pela qual sobressai a modalidade epistémica [a da «possibilidade epistémica para poder», de que nos fala Fátima Oliveira na Gramática da Língua Portuguesa Lisboa, Caminho, 2003, p. 248), de Maria Mateus et al.].

A dúvida da consulente deve-se, decerto, à interpretação do sentido da forma verbal poderá, uma vez que o verbo poder é um dos verbos modais (com valor deôntico, mas somente quando usado no sentido de permissão ou de obrigação, a par dos verbos dever e ter de).

Ora, na frase em análise, não se trata de um caso de uso do verbo poder com o valor de permissão (como, por exemplo, nas frases: «Tu podes sair.» «O Rui pode sair.»).

Nota — Segundo o Dicionário Terminológico [em Linguística Descritiva (B), Semântica (B.6), Valor Modal (B.6.4.)], modalidade é definida como «categoria gramatical que exprime a atitude do locutor face a um enunciado ou aos participantes do discurso. A modalidade permite expressar apreciações sobre o conteúdo de um enunciado (i) ou representar valores de probabilidade ou certeza (modalidade epistémica) (ii), ou de permissão ou obrigação (...