Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tenho dúvidas relativamente à palavra remédio, se é grave ou esdrúxula. Diria que era esdrúxula, mas, como a sílaba -dio é dita como um todo, fico sem ter a certeza.

Agradeço que me esclareçam esta dúvida.

Resposta:

Remédio é, de facto, uma palavra esdrúxula (ou proparoxítona),1 pois a sílaba tónica recai na antepenúltima sílaba: re--di-o (cf. Dicionário da Divisão Silábica, do Portal da Língua Portuguesa).

Relativamente à questão sobre -dio, faz-se a divisão silábica – di-o – das duas vogais finais da palavra, porque não pertencem a um ditongo decrescente2. É um caso de hiato, razão pela qual se separam duas vogais consecutivas.

Nota: Importa referir que, para a translineação, não se deve isolar uma vogal aquando da mudança de linha. Assim, na translineação das últimas sílabas, estas não se separam. Ficará, então, do seguinte modo:

remé-

dio.

1 Na verdade, trata-se de esdrúxulas ou proparoxítonas aparentes, segundo o Acordo Ortográfico de 1990 (Base XI, 2; sublinhado nosso): «Levam acento agudo: [...] b) As chamadas proparoxítonas aparentes, isto é, que apresentam na sílaba tónica/tônica as vogais abertas grafadas a, e, o e ainda i, u ou ditongo oral começado por vogal aberta, e que terminam por sequências vocálicas pós-tónicas/pós-tônicas praticamente consideradas como ditongos crescentes (-ea, -eo, -ia, -ie, -io, -oa, -ua, -uo, etc.): álea, náusea; etéreo, níveo; enciclopédia, glória; barbárie, série; lírio, prélio; mágoa, nódoa; exígua, língua; exíguo, vácuo

2

Pergunta:

Na frase «Os livros divertem-me», qual a função sintática de «me»?

Resposta:

A análise sintática da frase é a seguinte:

Sujeito: «Os livros»

Predicado: «divertem-me»

«divertem» — verbo

«me» — complemento direto.

A sintaxe do verbo divertir — quer como transitivo direto1 (cf. Dicionário Gramatical dos Verbos Portugueses, da Texto Editores, 2007, p. 336) quer como verbo psicológico2 (cf. Inês Duarte, no cap. 12 da Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003, p. 607) — seleciona um argumento interno com a relação gramatical de complemento direto.

1 Tanto com o valor/sentido de distrair [«Os puzzles divertem as crianças»] como com o de alegrar [«Os seus disparates divertem os colegas»], o verbo divertir é transitivo direto, selecionando um complemento direto: «as crianças» (em «Os puzzles divertem as crianças»), «os colegas» (em «Os seus disparates divertem os colegas»).

2 Segundo Inês Duarte (op. cit.), divertir é um dos verbos psicológicos [tal como admirar, afligir, alegrar, assustar, aterrorizar, cansar, encantar, entusiasmar, entristecer, espantar, incomodar, inquietar, irritar, ofender, perturbar, preocupar, <...

Pergunta:

«Percebem é de porrada/percebem de porrada», num comentário dum polícia vulgar para um colega:

«Estes polícias do Corpo de Intervenção só percebem é de porrada», ou «Estes polícias do Corpo de Intervenção só percebem de porrada»?

A primeira frase está bem?

Resposta:

Não há dúvida de que o comentário de um polícia para outro — «Estes polícias do Corpo de Intervenção só percebem é de porrada» — se trata de um enunciado do discurso oral, em que o emprego da forma verbal «é» intensifica o sentido da mensagem, ou seja, o da opinião/avaliação do autor sobre o Corpo de Intervenção.

Nessa fala, tal forma verbal do verbo ser é usada intencionalmente, como expressão de realce, gerando um subtipo de construção de clivagem1.

Apesar de essa expressão não ser essencial à frase, o seu emprego não é fator de incorreção, pois serve para enfatizar o sentido que se quer conferir à mensagem. Destaca-se, sobretudo, como marca (oralizante) de um discurso empolgado.

1 O processo em que a forma «é» do verbo ser põe em destaque a palavra «porrada» (que pode ocorrer à direita ou à esquerda do verbo) — «Estes polícias do Corpo de Intervenção só percebem é de porrada» ou «Só de porrada é que os polícias do Corpo de Intervenção percebem» — insere-se no das construções de clivagem que está presente nas frases que têm «condições de verdade idênticas à frase simples e de veicularem no essencial o mesmo significado» (Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003, p. 683). Esse processo ocorre frequentemente com a sequência «é que», como se pode verificar nas seguintes frases: «O queijo é que o corvo comeu.» = «O corvo comeu o queijo.»

Pergunta:

Agradecia que confirmassem se está correcta a frase: «Alerta-se ainda para o facto de deverem ser salvaguardadas as questões relativas à garantia.»

Obrigada.

Resposta:

A ocorrência de mais de um infinitivo [um flexionado — «deverem» — e outro composto — «ser salvaguardadas»], numa construção com uma locução verbal (com o auxiliar modal dever) que constitui o núcleo verbal — «deverem ser salvaguardadas» —, no enunciado em causa — «Alerta-se para o facto de deverem ser salvaguardadas as questões relativas à garantia» —, pode parecer estranha, mas a realidade é que a frase está correta.

Trata-se de um caso de uma completiva de infinitivo flexionado1 que ocorre como complemento do nome facto, realidade de que nos fala Inês Duarte na Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Caminho, 2003, p. 631), explicitando, sobre completivas deste tipo, que «não existe qualquer restrição sobre a ocorrência em posição pré-verbal de SN (sintagmas nominais) plenos com a relação gramatical de sujeito. Assim sendo, o sujeito poderia ocorrer também antes do verbo: «Alerta-se ainda para o facto de as questões relativas à garantia deverem ser salvaguardadas.»

Nota: Não haveria, decerto, dúvida sobre a correção/gramaticalidade do enunciado se se tratasse de uma outra forma possível da frase — «Alerta-se ainda para o facto de que devem ser salvaguardadas as questões relativas à garantia» —, em que se verifica a ocorrência do indicativo (no auxiliar da locução verbal — «devem ser salvaguardadas»), o modo verbal previsto pelas completivas selecionadas como argumento interno pelo nome facto (cf. Mira Mateus et al., ob. cit., p. 600), nome este «semanticamente factivo, [que] pode seleccionar como argumento completivas finitas introduzidas por de» (idem, p. 616).

1 A legitimidade do infinitivo flexionado deve-se à necessidade da concordância com o sujeito com realiz...

Pergunta:

Diz-se «mais quantidade», ou «maior quantidade»?

Resposta:

São possíveis as duas formas — «mais quantidade» e «maior quantidade» —, dependendo do sentido que se queira dar à expressão.

Mais e maior não são sinónimos.

Mais é um advérbio de quantidade ou intensidade1 que, tal como a própria classificação designa, tem o valor semântico de quantificação, reforçando o sentido da palavra que antecede. Não é, portanto, por acaso que possa parecer estranha a ocorrência de uma estrutura em que o advérbio de quantidade mais preceda o nome/substantivo quantidade2, mas isso não significa que haja incorreção nessa construção, pois a presença de mais intensifica/reforça a ideia da quantidade.

Repare-se nos seguintes exemplos:

«Mais quantidade não corresponde a mais qualidade.»

«Quanta mais quantidade de leite vai ser necessária para essas crianças?»

«Temos, em reserva, muito mais quantidade de carne do que de peixe.»

Por sua vez, maior é a forma (especial) do comparativo de superioridade do adjetivo grande, correspondendo a "mais grande". Por isso, assim como é vulgar dizer «uma grande quantidade», também é correto usar-se o comparativo e o superlativo de superioridade de grande para caraterizar a quantidade de que se fala. Vejamos, por exemplo, as seguintes frases:

 

«É preciso estarmos atentos aos alimentos com maior quantidade de sal.»

«Para o próximo inverno, precisamos de uma maior quantidade de madeira para a casa da serra.»