Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Relativamente à expressão «Frutos, dão-os as árvores...» — no poema de Fernando Pessoa — gostava de uma justificação para que o pronome os não leve n, pois o verbo está conjugado com som nasal.

Resposta:

Qualquer outro discurso/texto que não seja literário está sujeito à norma, às regras gramaticais. Por isso, nesse tipo de texto/discurso (não literário), é exigida a forma «dão-nos», tal como a consulente sugere, uma vez que se trata de um caso em que a forma verbal termina em ditongo nasal, o que implica que «o pronome assuma as modalidades no, na, nos, nas» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2001, p. 280).

No entanto, o enunciado em questão — «Frutos, dão-os as árvores» — é retirado de um poema de Fernando Pessoa, ou seja, é um excerto de um texto literário, cujo estatuto lhe confere a licença poética. Trata-se, portanto, de língua poética1 ou literária que alguns teóricos consideram que «representa um desvio quando comparada com a língua normal e, por conseguinte, a gramática que permite descrever e explicar os textos literários não se pode identificar totalmente com a gramática da língua normal» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 1983, p. 151).

1 Sobre a licença poética do texto literário, importa recordar que Todorov «identifica a essência da língua poética com a violação das normas da língua comum» e que Samuel R. Levin «sublinha que a poesia se distingue da linguagem comum por certas liberdades que consubstanciam em desvios da gramática da linguagem comum e que implicam fundamentalmente categorias sintáticas e semânticas» (Aguiar e Silva, ob. cit., pp. 151-152).

Pergunta:

Encontrei um exercício que pedia para detectar a gramaticalidade/agramaticalidade das frases:

a) «Os atletas, cuja perseverança e ímpeto levaram à final, serão recompensados.»

b) «Os atletas, cujas perseverança e ímpeto levaram à final, serão recompensados.»

Será possível explicarem-me a regra a aplicar nestes casos?

Resposta:

A primeira frase — «Os atletas, cuja perseverança e ímpeto levaram à final, serão recompensados» — está correta, pois respeita a norma gramatical que prevê a concordância do pronome relativo cujo, enquanto adjunto adnominal1, «apenas com o substantivo/nome mais próximo2».

Por sua vez, a segunda frase é agramatical, pois há erro na concordância do pronome com os nomes/substantivos que precede, sendo incorreto o emprego da forma feminina plural cujas para preceder os dois nomes de géneros diferentes: perserverança (feminino) e ímpeto (masculino).

Nota: Importa acrescentar, também, que os gramáticos e os linguistas são unânimes na flexão de número e de género do pronome (ou constituinte3) relativo cujo — que, segundo a gramática tradicional, «é, a um tempo, [pronome] relativo e possessivo, equivalente pelo sentido a do qual, de quem, de que» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2001, p. 350) — e que «concorda com a coisa possuída em género e em número (idem), razão pela qual nos apresentam os seguintes exemplos:

«Convento d´águas do Mar, ó verde Convento,/ Cuja Abadessa secular é a Lua/ e Cujo Padre-capelão é o Vento...» (António Nobre, , 28)

«Herculano é para mim, nas letras, depois de Camões, a figura em cujo espírito e em cuja obra sinto com plenitude o génio heróico de Portugal.» (Gilberto Amado, Três livros, 36).

Portanto, uma outra forma possível seria «Os atletas, cuja perseverança e cujo ímpeto...

Pergunta:

Gostaria de saber o que podemos considerar como textos paraliterários.

Resposta:

A partir do conceito de paraliteratura (para- + literatura) — que designa o «conjunto de textos que não se enquadra no consenso literário social propriamente dito (Por ex.: as revistas sensacionalistas, as letras de músicas, as novelas e telenovelas, as histórias em quadradinhos)» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001) — retira-se o do adjetivo paraliterário.

Por isso, textos paraliterários são todos aqueles que não correspondem aos critérios exigidos pela arte literária. Por exemplo, as lengalengas fazem parte da literatura oral, inserindo-se nos textos paraliterários.

Sobre isto, importa transcrever o que nos diz Arnaldo Saraiva, em «A Arte da Comunicação Oral» (in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991 pp. 418-419): «Nas sociedades onde predomine a comunicação impressa ou a electrónica, como nas sociedades em que predomina a comunicação oral, há necessariamente uma grande quantidade de textos literários ou paraliterários que são transmitidos oralmente, alguns dos quais ainda hoje podem desconhecer outro qualquer suporte que não seja o da memória, embora haja cada vez mais tendência para os recolher em livros e em cassetes ou videocassetes. Entre esses textos, ou microtextos, incluem-se canções, orações, lengalengas, adivinhas, provérbios, lendas, contos, fábulas, mitos, autos, fórmulas de vário tipo, paródias, romances, anedotas, ensalmos, desafios, quadras, slogans, piropos, etc. É o conjunto destes textos que constitui a chamada “literatura oral”.»

Nota: Se nos debruçarmos sobre a etimologia da palavra, será relativamente fácil depreendermos o seu sentido, uma vez que o elemento de formação para- [«do grego pará, "cerca de, perto de"] exprim...

Pergunta:

Será que é correcto dizer «carne de peixe»?

Resposta:

É, de facto, correto dizer-se «carne de peixe», porque o termo carne designa, também, «parte musculosa comestível do corpo de certos peixes e crustáceos» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001, assim como «parte suculenta e comestível de certos frutos» (idem), como se pode verificar pelos exemplos apresentados pelo dicionário citado:

«O pargo tem uma carne muito saborosa.»

«Gosto muito da carne branca da lagosta.»

«Gostava, em miúdo, da carne vermelha da melancia.»

No entanto, importa lembrar que este é um dos significados/valores do termo carne (do latim caro, carnis), pois esta palavra designa várias outras realidades (entre as quais figura o sentido distinto do de peixe), de que se destacam as seguintes:

— substância mole, fibrosa, impregnada de sangue, que está entre a pele e os ossos do homem e dos animais, principalmente a parte vermelha dos músculos. Ex.: «O golpe rasgou a carne até ao osso.»

— parte do corpo com mais massa muscular; parte carnuda do corpo. Ex.: «Era muito alto, seco de carnes e tinha um ar carrancudo.»

— tecido muscular dos animais, mamíferos e aves, usado na alimentação. Ex.: «Prefere a carne ao peixe.»

— o corpo, por oposição à alma; a matéria por oposição ao espírito.

— a natureza sensual do homem por oposição à espiritual; as suas paixões e instintos (= sensualidade; luxúria; concupiscência). Ex.: «Mas era ela própria que sem cessar aludia a desvarios e pecados da carne — para os vituperar, com ódio.»

— parentesco por consang...

Pergunta:

Na frase «Provavelmente, vou a Lisboa», «provavelmente» constitui um modificador de frase. Se substituirmos o advérbio pela expressão «É provável que», esta desempenhará a mesma função?

Grata pela atenção.

Resposta:

Com a substituição do modificador «provavelmente» pela estrutura «é provável que», a frase — «Provavelmente, vou a Lisboa» — passaria de simples a complexa — «É provável que vá a Lisboa» —, constituída por duas orações:

«É provável» — oração subordinante;

«que vá a Lisboa» — oração subordinada completiva (com relação gramatical de sujeito).

Nesta frase complexa, deparamo-nos com um caso de uma oração subordinada completiva (que ocorre em posição pós-verbal) selecionada como sujeito pelo núcleo adjetival provável, razão pela qual exibe o modo conjuntivo (cf. M. H. Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, p. 602).