Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Estou a dar Os Lusíadas e não consigo perceber o seguinte:

O porquê do aposto na expressão: «mas já a Amorosa estrela cintilava/Diante do Sol claro, no Horizonte! Mensageira do dia (...)» (estância 85)

E qual a figura de estilo usada e o seu significado na expressão «Em pedaços a fazem cum ruído/que o Mundo parece ser destruído!»?

Obrigada.

Resposta:

Teria sido de grande utilidade que a consulente tivesse indicado o canto (e a estância, no caso do segundo exemplo) em que se situam os excertos sobre os quais nos apresenta as suas dúvidas, pois não se pode dar explicar o sentido de dois ou de três versos sem que se conheça — e compreenda — o contexto em que estão inseridos.

Os dois excertos pertencem ao canto VI, ao episódio da grande tempestade vivida pelos marinheiros portugueses, experiência terrível que antecede a chegada das naus a Calecute, na Índia.

O primeiro excerto, posterior ao segundo, anuncia a mudança com o nascer do dia claro e alegre, após a horrível noite de tempestade — «Mas já a amorosa estrela cintilava/Diante do Sol claro no horizonte,/Mensageira do dia, e visitava/A terra e o largo mar, com leda fronte. (estância LXXXV – 85), enquanto o segundo pertence à estância LXXI (71) em que é narrado o início da tempestade: 

«Não eram os traquetes bem tomados,
Quando dá a grande e súbita procela.
“Amaina (disse o meste a grandes brados),
Amaina (disse), amaina a grande vela!”
Não esperam os ventos indinados
Que amainassem, mas, juntos dando nela,
Em pedaços a fazem cum ruído
Que o Mundo pareceu ser destruído!»
 

No primeiro excerto, em que o narrador introduz a presença de Vénus, que, aqui, é apresentada como «a amorosa estrela [que] cintilava /diante do Sol claro no horizonte», a expressão «Mensageira do dia», colocada entre vírgulas, é o aposto de «amorosa estrela» (Vénus), porque explica e acrescenta algo que lhe é característico – Vénus anuncia o dia, traz a beleza e a claridade após a escuridão da noite. Vénus simboliza o amor, a luz, a bonança.

Por sua vez, os dois últimos versos da estância LXXI – «Em pedaços a fazem cum ruído,/Que o m...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a figura de estilo relativa à expressão «onda de alegria».

Obrigada!

Resposta:

À primeira vista, a metáfora é a figura mais evidente em «onda de alegria», expressão do poema «Quando as crianças brincam», de Fernando Pessoa, pois está aí presente «um processo pelo qual, aproximando duas palavras, se opera uma deslocação de uma para outra através de um termo intermédio subentendido […], havendo uma deslocação de sentido através do termo intermédio subentendido» (João David Pinto Correia, «A Expressividade na Fala e na Escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, p. 502).

Mas, se tivermos em conta o valor sugestivo que «onda de alegria» passa ao leitor, insinuando a ideia de várias sensações (tácteis, auditiva e olfactivas) que invadem o sujeito poético perante a imagem das crianças a brincar, apercebemo-nos de que também há a sinestesia, figura de retórica que surge intimamente ligada à metáfora e à imagem — «[de sin - + gr. aísthesis, «sensação» + - ia]» — «processo estilístico que consiste na associação, pela palavra, de duas ou mais sensações pertencentes a registos sensoriais diferentes. A utilização de tal figura de retórica permite a transposição de sensações, ou seja, a atribuição de determinadas impressões sensoriais a um sentido que não lhes corresponde» (E-Dicionário de Termos Literários, org. Carlos Ceia).

Pergunta:

Depois do magnífico e pomposo discurso de Paulo no Areópago (capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos), podemos verificar que se converteram ao cristianismo um tal de Dionísio, uma mulher chamada "Damaris" e alguns outros. A maioria das versões bíblicas trazem o nome "Dâmaris", ao passo que pelo menos uma tradução opta pela forma "Damáris" (sic). Consultei um dicionário latino, mas não me ajudou porque só consigna um antropônimo (Damalis, vocábulo proparoxítono ou esdrúxulo). Permanece, então, a dúvida: em português é "Dâmaris", ou "Damáris"?

Muito grato!

Resposta:

Da pesquisa em obras que têm como referência o actual Acordo Ortográfico de 1990, concluímos o seguinte:

Não encontrámos atestada nenhuma das formas no recente Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2009), da Academia Brasileira das Letras, relativo ao português do Brasil, porque tal obra não inclui nomes próprios. Por sua vez, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2009), da Porto Editora, referente ao português europeu, regista duas formas como antropónimos: Dâmalis e Dámaris. (João Malaca Casteleiro, coord., Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Porto, Porto Editora, 2009), o que não corresponde ao que nos indica o anterior Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves, que respeita o Acordo Ortográfico de 1945.

De fa{#c|}to, Rebelo Gonçalves regista como única forma Dâmalis, com a referência «antr. f. 2 núm.», ou seja, «antropónimo feminino de dois números» (F. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 1966, p. 310), o que significa que Dâmalis é a forma usada para este nome próprio no singular e no plural.

Relativamente à sua origem, o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, tendo como referência o Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves (ob. cit.),  atesta Dâmalis como antropónimo feminino de origem grega — «do gr. Dámalis, pelo lat. Dămălis» (José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 3.ª ed., Vol. I, Lisboa,...

Pergunta:

«Andar (na esteira) sem sair do lugar» é um paradoxo, ou uma antítese?

Resposta:

Tanto a antítese como o oxímoro — o «paradoxo» literário — são «figuras de pensamento com efeitos de comparação por oposição» (João David Pinto Correia, «A expressividade na fala e na escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, p. 497), tal como adynaton1 e o quiasmo2, o que comprova a proximidade entre esses dois processos estilísticos.

Convém, por isso, recordar as respectivas definições, retiradas da obra citada.

Classifica-se como antítese o recurso em que se verifique «aproximação de dois seres, duas realidades, duas situações com sentido antagónico, com o fim de tornar cada um deles mais enfático. […] A antítese compreende — “a antítese de frase”, “a antítese de grupos de palavras” e “a antítese de palavras isoladas”, e tem a coordenação como “fundamento sintáctico”: «Repousa lá no céu eternamente / e viva eu cá na terra sempre triste» (Camões, Sonetos); ou «Entre os servos de Deus há esta diferença: uns são servos de Deus, porque servem a Deus; outros são servos de Deus, porque Deus se serve deles» (Padre António Vieira).

Por sua vez, o oxímoro é considerado como uma «espécie particular de antítese: […] variante especial de antítese de palavras isoladas […] que constitui, entre os membros antitéticos, um paradoxo intelectual. Este “paradoxo” pode resultar de «uma tensão entre o portador da qualidade (substantivo, verbo, sujeito) e a qualidade em si (atributo, advérbio, predicado)»: «Ele era um camponês / Que andava preso em liberdade pela cidade» (Fernando Pessoa, Poesias de Alberto Caeiro); «da tensão entre qualidades (adjectivos, advérbios)»: «Aquela triste e leda madrugada» (Camões, Sonetos); ou da «distinção...

Pergunta:

Qual o significado da palavra "cresmática"?

Aparece no capítulo XVIII de Os Maias:

«Por sua vez o legislador ouve dizer que lá fora se levanta o nível da instrução; — imediatamente põe no programa dos exames de primeiras letras a metafísica, a astronomia, a filologia, a egiptologia, a cresmatica, a crítica das religiões comparadas, e outros infinitos terrores.»

Resposta:

A palavra "cresmática" não se encontra registada nas várias obras relativas ao vocabulário da língua portuguesa que consultámos, de que se destacam o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa1 (1940), da Academia das Ciências de Lisboa, o Vocabulário da Língua Portuguesa2 (1966), de Rebelo Gonçalves, o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa3 (1987), de José Pedro Machado, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa4 (1981), de José Pedro Machado (coord.), o Grande Dicionário da Língua Portuguesa5 (2004), da Porto Editora, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa6 (2001) e o  Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea7 (2001), da Academia das Ciências de Lisboa.

Surgem, sim, na grande maioria destas obras (à excepção do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea), dois termos que se aproximam a nível fónico e vocabular: crestomatia e crematística.

O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa atesta crestomatia (do grego chrestomátheia, «estudo das coisas úteis, boa instrução») como «selecção dos melhores ou dos mais úteis trechos de autores, como as compilações de Prohes e de Heládio», significado este que, talvez, derive do francês chrestomathie, «colecção de textos de autores clássicos» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa). Crestomatia remete, assim, para antologia de textos clássicos.

Importa referir que o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa nos fornece, também, uma informação que se nos afigura de grande relevância, uma vez que no...