Teria sido de grande utilidade que a consulente tivesse indicado o canto (e a estância, no caso do segundo exemplo) em que se situam os excertos sobre os quais nos apresenta as suas dúvidas, pois não se pode dar explicar o sentido de dois ou de três versos sem que se conheça — e compreenda — o contexto em que estão inseridos.
Os dois excertos pertencem ao canto VI, ao episódio da grande tempestade vivida pelos marinheiros portugueses, experiência terrível que antecede a chegada das naus a Calecute, na Índia.
O primeiro excerto, posterior ao segundo, anuncia a mudança com o nascer do dia claro e alegre, após a horrível noite de tempestade — «Mas já a amorosa estrela cintilava/Diante do Sol claro no horizonte,/Mensageira do dia, e visitava/A terra e o largo mar, com leda fronte. (estância LXXXV – 85), enquanto o segundo pertence à estância LXXI (71) em que é narrado o início da tempestade:
Quando dá a grande e súbita procela.
“Amaina (disse o meste a grandes brados),
Amaina (disse), amaina a grande vela!”
Não esperam os ventos indinados
Que amainassem, mas, juntos dando nela,
Em pedaços a fazem cum ruído
Que o Mundo pareceu ser destruído!»
No primeiro excerto, em que o narrador introduz a presença de Vénus, que, aqui, é apresentada como «a amorosa estrela [que] cintilava /diante do Sol claro no horizonte», a expressão «Mensageira do dia», colocada entre vírgulas, é o aposto de «amorosa estrela» (Vénus), porque explica e acrescenta algo que lhe é característico – Vénus anuncia o dia, traz a beleza e a claridade após a escuridão da noite. Vénus simboliza o amor, a luz, a bonança.
Por sua vez, os dois últimos versos da estância LXXI – «Em pedaços a fazem cum ruído,/Que o mundo pareceu ser destruído» – mostram-nos os efeitos (e os estragos) da fúria dos «ventos indinados» na grande vela, que o mestre tinha pedido aos marinheiros que a amainassem, e as sensações que a sua destruição desperta nos navegadores – «em pedaços a fazem cum ruído» –, evidenciando a preocupação do narrador em passar para o leitor o poder destruidor dos ventos perante a impotência dos marinheiros. Por isso, termina essa estrofe com a força e o barulho dos ventos a rasgarem a grande vela em pedaços, imagem tão violenta, que parecia, aos marinheiros, a destruição do Mundo – «Que o Mundo pareceu ser destruído!».
Portanto, há nestes dois versos, pelo menos, três figuras de estilo:
– a sinestesia em «em pedaços a fazem cum ruído», uma vez que com esta expressão o narrador pretende recriar o ambiente vivido, passando para nós as sensações visuais e auditivas da destruição da vela. A sinestesia é a figura de retórica usada para permitir a transposição de sensações;
– a hipérbole em «Que o Mundo pareceu ser destruído!», pois há nessa expressão um exagero da situação, mas este recurso é utilizado para enfatizar o ruído e a imagem de horror vividos pelos marinheiros;
– a inversão ou anástrofe no primeiro verso, porque a ordem lógica da frase está alterada: «Em pedaços a fazem cum ruído» → «a fazem em pedaços cum ruído».