Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O verbo ensinar não se usa com a preposição a («a alguém»)? Estão correctas as inúmeras frases agora colocadas nas ruas de Lisboa, a propósito da visita do Papa? Exs.: «Confiar foi o Pai que me ensinou», «Rezar foi o Pai que me ensinou», «Partilhar foi o pai que me ensinou». E sem qualquer tipo de pontuação.

Agradeço o esclarecimento.

Resposta:

Embora seja nossa prática construirmos frases com o verbo ensinar em que a presença da preposição a esteja implícita, a realidade é que esse verbo pressupõe vários tipos de construção que estão intimamente relacionados com a sua classificação — como transitivo directo, como transitivo indirecto e, também, como transitivo directo e indirecto — em função da presença e do tipo de complemento que selecciona. 

De qualquer modo, o uso da preposição a não se restringe a uma ou a outra função (complemento directo ou complemento indirecto) nem está dependente dos sentidos atribuídos a ensinar: o de «instruir», o de «dar a saber», o de «mostrar» ou o de «leccionar». 

Reparemos nas seguintes frases:1 

a) «O professor ensina os alunos» [GN (Suj.) + V (Predicado) + GN (C.dir.)] (V. Tr. Dir. - ensinar = instruir) 

b) «Divulgar a triagem do lixo ensinará a população» [Frase não finita (Suj.) + V + GN (C. dir.)] (V. Tr. Dir.  - ensinar = instruir) 

c) «O manual ensina que a batalha teve lugar no século XVIII» [GN (Suj.) + V + Frase finita (C. dir.)] (V. Tra. Dir. - ensinar = dar a saber) 

d) «A demonstração ensina

Pergunta:

Gostaria de saber se a construção «A deveria permitir B» tem (ou pelo menos pode ter) o significado de que «A, apesar de que deveria, NÃO permite B».

Pesquisei sobre isso e creio que o verbo dever (no futuro do pretérito) no caso é um verbo (auxiliar) modal que expressa algum tipo de aspecto que quem escreveu quis dar ao verbo principal. Se esse aspecto é o mesmo que expressei no parágrafo anterior é a minha dúvida (ou se existe algum outro possível significado).

Pelo que pesquisei, achei difícil encontrar material sobre esse assunto específico (verbos modais). Na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cunha e Cintra, por exemplo, só encontrei uma brevíssima referência a eles na página 478 da 5.ª edição, e ainda como observação (a não ser que, em outro lugar do livro, me tenha passado despercebido).

Se existir material sobre isso (verbos modais, em especial o dever no futuro do pretérito, ou nem tão específico assim mesmo), seria possível me indicar tais?

Aliás, já comentando sobre o site, que é muito bom por sinal, seria interessante ver mais referências e sugestões de leitura sobre os assuntos perguntados (pelo menos eu gosto de ir além das respostas que me são dadas).

Grato pela atenção e parabéns pelo ótimo trabalho que vem sendo feito.

Resposta:

Sobre a frase em questão, é claro que, quando se pronuncia «A deveria permitir B», se pode inferir que ainda não se verifica a permissão de B no momento em que se enuncia tal frase. Mas isso é uma propriedade dos enunciados em que ocorre o modal dever, com valor deôntico, isto é, exprimindo obrigação: neles se marca a perspectiva do enunciador sobre a atitude de outrem em relação a determinada situação, dando a ideia de uma proposta; também é possível entender tais enunciados como uma crítica sobre uma realidade com a qual o enunciador não concorda, o que é reforçado pela forma «deveria» (condicional em Portugal; futuro do pretérito no Brasil).1

Importa lembrar que «os modais dever, poder, ter de e ser capaz de apresentam um significado impreciso ou indeterminado, dependendo em grande medida dos contextos em que surgem para determinar qual o domínio, raciocínio ou acção, a que se aplicam» (M.ª Helena Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, pp. 249-250).

Ao verbo dever são atribuídos vários valores modais:2

a) o de necessidade (a par de ter de), na modalidade externa ao participante, como se pode ver no seguinte exemplo:

«Para ir para a universidade, deves/tens de apanhar o autocarro 20»;

b) o de obrigação directa ou relatada, a par de ter de (modalidade deôntica):

«Tu deves/tens de sair já»;

«O Rui deve/tem de sair já»;

c) os de probabil...

Pergunta:

Queria saber o significado do provérbio «Não peças a quem pediu nem sirvas a quem serviu».

Resposta:

O provérbio «Não peças a quem pediu, nem sirvas a quem serviu» é enquadrado por José Alves Reis, em Provérbios e Ditos Populares (Lisboa, Litexa Editora, 1996), na área dos «Conselhos», valor que se depreende a partir da utilização do modo imperativo — em «Não peças» e «nem sirvas» — e do tratamento por «tu» (marca de à-vontade, ou mesmo de familiaridade) usado pelo enunciador à pessoa a quem se dirige.

Com este provérbio pretende-se alertar o outro para as humilhações que, decerto, sofrerá por parte de alguém a quem aquele se dirigiu para solicitar algum favor, ou alguma atenção, evidenciando sinais de necessidade ou de dependência. O conselho incide precisamente na particularidade da pessoa a quem é feito o pedido ou para quem se trabalha (a quem se serve): essa pessoa que, hoje, tem uma posição de segurança e de superioridade está marcada por um passado de pobreza, de submissão e de subserviência. Tendo sido alvo de humilhações ao longo de alguns anos, porque se encontrava numa situação de dependência de outros, passa da posição de vítima para a de senhor(a) da situação, sentindo necessidade de fazer sentir ao outro o mesmo por que passou, mostrando prazer em lhe lembrar a sua posição de inferioridade numa relação em que detém o poder, não deixando margem para qualquer tipo de aproximação que possa vir a pôr em causa a distância que quer demarcar, ostentando total repúdio por atitudes de compreensão ou tolerância.

Este provérbio funciona, quase, como um aviso para que ninguém caia no risco de «ficar nas mãos» de alguém que se envergonhe do seu passado de submissão, porque a vingança no outro, que estará à sua mercê, é a resposta que encontra para apaziguar o seu ressentimento para com um tempo passado, mas não ultrapassado. Assim, todo aquele que lhe pede ou o serve confere-lhe o estatuto desejado (e invejado), o do poder, o que lhe dá oportunidade d...

Pergunta:

Na expressão «esse vento que sopra e ateia os incêndios», sendo que a referência a vento significará «amor», o recurso presente é a metáfora, ou a personificação?

Resposta:

Para se poder dar uma resposta mais segura, teria sido muito importante termos tido acesso ao excerto que nos proporcionasse a parte que mencionasse a que é que «esse vento» se refere, pois ser-nos-ia bastante útil para inferirmos a intenção com que esta frase foi dita, o que poderia implicar a existência de outros recursos estilísticos. Imaginemos que essa frase tinha sido formulada por alguém que estaria a criticar outrem, ou mesmo a brincar/gozar com alguém, que estivesse a passar por uma experiência de um sentimento que provocasse nela grandes alterações, sendo alvo de ditos de outros. Então, estaríamos em presença de uma ironia e, até, de um disfemismo, porque tal sentimento estaria associado a algo negativo, que provocava desequilíbrio na pessoa que ama. De qualquer forma, independentemente da intenção com que foi dita, a existência destes recursos não compromete a de outras figuras de estilo.

Como a consulente nos diz que esta frase tem como referência o «amor», vamos partir do princípio de que o sujeito que enuncia essa frase não a diz num tom irónico, mas como se o sentisse ou como se o analisasse como puro objecto de interesse.

Se o sujeito de enunciação, para definir ou caracterizar o amor, faz a fusão de duas realidades — a do amor e a do vento — que se assemelham, que têm pontos comuns, sem colocar o termo de ligação «como». Trata-se, portanto, de uma metáfora em «esse vento».

Ao especificar as acções «desse vento», dizendo «que sopra e ateia os incêndios», dá-lhe vida, do que se conclui que está aí presente também a personificação ou prosopopeia, «processo que consiste em atribuir vida, ou qualidades humanas, a seres inanimados, irracionais ou mortos» (João David Pinto Correia, «A expressividade na fala e na escrita» in Falar melhor, Escrever melhor, Li...

Pergunta:

Na frase «João é homem», o termo homem é adjetivo?

Resposta:

Se fizermos a análise sintáctica dessa frase, não há qualquer dúvida de que o termo homem é (nome) predicativo do sujeito, porque se trata de uma frase com um predicado nominal, isto é, «um predicado formado por um verbo de ligação ou copulativo [ser, estar, ficar, parecer, permanecer…] + predicativo» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 133), servindo «os verbos de ligação ou copulativos para estabelecer a união entre duas palavras [o sujeito da frase — «João» — e o predicativo — «homem»] ou expressões de carácter nominal».

A dúvida do consulente deve-se, certamente, ao facto de o termo homem não ser o sujeito da frase, mas ocorrer após o verbo ser, um verbo que é, habitualmente, usado para se caracterizar algo ou alguém, o que pode insinuar que todo o termo de caracterização seja um adjectivo, pois, sendo «essencialmente um modificador do substantivo, serve para caracterizar os seres, os objectos ou as noções nomeadas pelo substantivo, indicando-lhes uma qualidade (ou defeito), o modo de ser, o aspecto ou aparência, os estado» (ibidem, p. 247). Por exemplo, se a frase fosse «João é inteligente» ou «João é magro», ou, ainda, «sensível/humano/compreensivo», a consulente não teria, decerto, dúvidas de que as palavras inteligente, magro, sensível, humano, compreensivo se tratavam ...