Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A freguesia de S. Salvador de Ílhavo tem, entre outros, dois lugares chamados de Alqueidão e Espinheiro. Qual a possível origem desses nomes?

Resposta:

Segundo o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, não há consenso relativamente à origem do topónimo Alqueirão, muito frequente em Portugal e na Galiza – com a forma de Alqueidón (Corunha). David Lopes, na Revista Lusitana (24.º, p. 263), defende que a etimologia de Alqueirão «deve ser alq(u)eddan(e), com ditongação de e em ei, e passagem de -an(e) em ão, segundo é de regra».

Por sua vez, Dozy, em Supplement II, aponta duas outras origens e fundamenta-as com várias fontes. Por um lado, identifica o nome Alqueirão «com o tufo calcário, sendo uma espécie de pedra calcária esbranquiçada e branda que endurece ao ar e, por isso, se emprega nas edificações, sobretudo usada nas abóbadas, escadas, etc., por causa da sua fraca densidade, [indicando que] em Fez há um sítio com este nome». Por outro lado, considera que se pode pensar noutro étimo, «alq(u)etuen(e), aparentemente mais aceitável, que significa, na África do Norte, “tenda” e também “acampamento”, [lembrando que] nos Anais de Arzila II (p. 233), aparece na forma alcaiatão (o a depois de i está a mais), “tenda de viagem”». No entanto, Dozy considera ser preferível, pela sua significação, o 1.º étimo.

Note-se que há registo deste topónimo desde o séc. XIII: Alqueidom, em 1258; Alqueidam, em 1352; em 1527, Alqueydam. É de referir que Alqueirão parece ter merecido especial simpatia de Gil Vicente, porque o cita várias vezes nas suas peças de teatro.

Relativamente a Espinheiro – topónimo frequente em Portugal, no Brasil e na Galiza , tem origem no nome/substantivo comum espi...

Pergunta:

Utiliza-se frequentemente a palavra algures para identificar acontecimentos no tempo, como, por exemplo, em expressões do género “algures no ano passado”, “algures em Junho” ou “algures no Verão”.

Todos os dicionários que consultei apontam para que a palavra algures apenas deva ser utilizada como referência a um determinado espaço.

Já que existem outras palavras utilizadas indiscriminadamente no âmbito das duas dimensões, espaço e tempo, altura («a determinada altura») ou passo («passo a passo»), por exemplo, seria incorrecto utilizar algures nos contextos acima referidos?

Que alternativas igualmente práticas me podem sugerir?

Resposta:

O advérbio algures, derivado «do cruzamento de algum e alhures [que, por sua vez, provém do latim aliorsu-, “em outro lugar”]» (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado), designa «algum lugar; alguma ou qualquer parte» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001).

Aliás, o valor de «algum lugar», «de alguma parte», associando este advérbio à noção de espaço, é o que se encontra registado em todos os dicionários consultados (Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo; Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

Estranha-se, por isso, o seu uso ligado à ideia de tempo. Talvez isso se deva à tendência de se misturar (e confundir) as categorias de espaço e de tempo, como se de um mesmo núcleo se tratasse. E, uma vez que algures remete para algo indefinido e impreciso (no domínio do espaço) e parece sugerir o recurso à memória (de algo longínquo – no tempo), poder-se-á tentar encontrar aí explicação para tal utilização desse advérbio.

Não é fácil sugerirmos possíveis alternativas para um advérbio (ou qualquer outro vocábulo) que transpareça a ideia de imprecisão a nível do tempo. Outrora parece-nos ser um termo que verbaliza imprecisão/indefinição no tempo, mas circunscreve-se a um passado remoto.

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem a seguinte dúvida: as palavras emissor e recetor têm feminino? Poderei dizer: «Anne Frank é a emissora, e a sua amiga é a recetora»? Normalmente, utiliza-se emissora como «emissora de rádio»...

Obrigada.

Resposta:

Tudo depende do contexto em que a palavra se insere.

A palavra emissor – «do latim emissōre-, “o que envia, o que lança”» (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado) – pode ser um nome/substantivo ou um adjetivo, e é usada como termo específico de vários domínios: economia, telecomunicações, linguística, eletricidade e eletrónica:

a) enquanto adjetivo, significando «que lança de si ou irradia; que emite» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2001), pode ser flexionada nos dois géneros – emissor/emissora – concordando com o nome a que se refere. Ocorre com frequência na área: da economia, para designar «banco ou estabelecimento de crédito que emite moeda em papel ou fiduciária» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2010); das telecomunicações – «que põe em circulação; que emite ondas hertzianas» (idem). Exemplos: «banco emissor»; «antena emissora»; «posto emissor»; «estação emissora».

b) Enquanto nome/substantivo da terminologia linguística1, assim como da eletricidade e da eletrónica2, é masculino: o emissor. Exemplos: «o emissor e o recetor»; «emissores de televisão»; «emissor radiotelegráfico».

c) No entanto, é nome/substantivo feminino – a emissora –, quando designa «posto que emite ondas hertzianas para telecomunicações; estação/empresa que produz e transmite programas radiofónicos ou televisivos». Exemplo: «Nos últimos anos assistimos à criação de muitas emissoras de rádio e de televisão.»

Passa-se praticamente o mesmo com a palavra recetor.

Como adjetivo,...

Pergunta:

Quando eu era estudante, ensinaram-me que não havia necessidade de utilizar aspas/itálico quando escrevia um latinismo. Atualmente, tenho procurado, mas não encontro qualquer regra a esse respeito.

Gostaria, se possível, de ser elucidada.

Resposta:

De facto, não encontrámos nenhuma regra para o uso específico de latinismos em texto escrito, mas isso deve-se, decerto, ao facto de se enquadrar no âmbito dos estrangeirismos, sobre os quais se indica o uso de itálico (mais vulgarizado) ou de aspas, como se pode verificar em A Metodologia nas Humanidades – Subsídios para o Trabalho Científico (Lisboa, Ed. Inquérito Universidade, 1994), de João Soares Carvalho: o uso do «grifo (grifo tanto significa "itálico" como "sublinhado") para reproduzir num texto em português as palavras estrangeiras que queremos citar» (idem, p. 61).

É de referir que há alguns (muito poucos) casos em que não tem sido usado o itálico nem as aspas, como em ex-líbris, porque a palavra foi integrada no léxico português como nome masculino (com hífen e com acento, grafia que se mantém com o novo Acordo Ortográfico, como se pode verificar no Vocabulário Ortográfico do Português, da responsabilidade do ILTEC). No entanto, esse é um caso de exceção, que deve ter assimilado a regra prevista para os títulos dos livros sagrados1.

1 Note-se, a propósito, que, em contraste com o que está estipulado para os títulos dos livros – «que deverão aparecer sempre em itálico» (idem)...

Pergunta:

Ouvi em uma música uma rima diferente. Para mim, não se trata de rima rica ou rara. Tenho chamado de rima sofisticada, pois rima uma palavra com a sonoridade de duas palavras unidas que estão em versos diferentes.

A música se chama Drumemeis, de autoria de Zeca Baleiro. Precisa de ser ouvida para que se compreenda o que quero dizer.

Tonho de Zefa

endoidou, tomou um êxtase

e ficou metido a besta,

se ferrou, foi prò xadrez

Aqui, êxtase rima com a sonoridade de «besta/ se».

Como classificariam esta rima? Não me lembro de ter ouvido ou lido nada parecido. Existem outros exemplos?

Resposta:

É de referir que a rima é uma coincidência de sons, não de letras.

Não há dúvida de que se trata de um tipo de rima invulgar, o que nos leva a sugerir que se enquadre nas chamadas rimas raras ou preciosas, pois entam no campo das «difíceis de encontrar» (Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 695).

Não correspondendo, na íntegra, às características da rima interior, consideramos, no entanto, que se pode classificar como um caso de rima com eco, uma vez que «se repetem consonâncias do mesmo grupo fónico» (idem, p. 697):

endoidou, tomou um êx/tase

e ficou metido a bes/ta,

se/ ferrou foi prò xadrez