Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O emprego de o(s)/a(s) como pronome demonstrativo é obrigatório em contextos como:

«Examinei os factos da vida do João, e os da da sua esposa e filhos.»

Ou pode dizer-se simplesmente:

«Examinei os factos da vida do João, e da sua esposa e filhos.»

Muítissimo obrigado pelo vosso trabalho!

Resposta:

Ambas as frases correspondem a usos corretos.

Em «Examinei os factos da vida do João, e os da sua esposa e filhos.» o grupo, ou sintagma, nominal «os factos da vida» é repetido anaforicamente através do pronome demonstrativo os.

Por seu lado, na frase «Examinei os factos da vida do João, e da sua esposa e filhos.» embora não exista uma anáfora explícita, tal não impede que a informação seja retomada e compreendida. Diríamos que se trata de uma elipse, que, em boa verdade, acontece também na frase anterior, uma vez que o grupo «os factos da vida» é omitido em «filhos».

Se se optasse pela explicitação exaustiva, então seria «Examinei os factos da vida do João, e os da sua esposa e [os dos] filhos.»

No entanto, dado o facto de se tratar de uma frase relativamente curta em que a informação é facilmente recuperada no contexto, a repetição anafórica explícita torna a mensagem menos fluida, pelo que se justifica a elipse.

Fazendo uma análise sintática de frase em análise, estamos perante:

Sujeito – nulo subentendido
Predicado – «examinei os factos da vida do João, e os da sua esposa e filhos».
Complemento direto – o CD é composto por três grupos nominais coordenados entre si:

«os factos da vida do João»
«os da sua esposa»
«filhos

Ao fazermos esta análise torna-se mais evidente o recurso à elipse em «filhos» não só do pronome os mas também da preposição de e do artigo os e, porque não?, do possessivo…

Por outro lado, estamos perante três grupos nominais equivalentes entre si, separados, ou unidos, pela conjunção copulativa e e entre os dois primeiros por vírgula. Em situações semelhantes, também é comum recorrer à

Pergunta:

É correto dizer «coisa na qual me lembro de que pensava»?

E é errado «coisa em que me lembro de que pensava»? Trata-se de um erro sintático ou eufónico?

E quanto a «coisa na qual me lembro que pensava?» É correta?

Muitíssimo obrigado.

Resposta:

As frases em questão estão sintaticamente corretas.

Na expressão em apreço estão presentes dois verbos cuja regência predominante é:

Lembrar

1 - Transitivo direto – rege CD - «O sócio lembrou os tempos áureos do clube.»
2 - Trans. direto e indireto – rege Cd e C.preposicional, introduzido pela preposição a – «O João lembrou ao amigo os bons tempos de outrora.»
3 – Pronominal reflexo: CDpron e CPrepos. introduzido pela preposição de - «Lembro-me de que os tempos eram difíceis.»

Pensar

1 - Transitivo direto – CD constituído por uma oração «Penso que estás em perigo.»; «Penso ser importante fazer o trabalho.»
2 – Trans. indireto – C. Prepos.
a)    introduzido por em - «Penso numa (em uma) forma de resolver o problema.»
b)    introduzido por sobre «Preciso de pensar sobre o assunto.»

Do ponto de vista sintático, diremos que a regência dos dois verbos está correta:

a) O verbo lembrar ocorre como pronominal sendo completado mediante um CD (me) e um comp. preposicional constituído por uma frase completiva (de que pensava…) «Lembro-me de que pensava…»
b) O verbo pensar ocorre com um complemento preposicional introduzido pela prep. em «Pensava numa coisa.»

A estrutura frásica resulta mais complexa uma vez que o complemento preposicional do verbo pensar está numa posição de destaque, no início da frase. Essa deslocação implica, ou exige, a introdução do pronome relativo «o/a qual» antecedido pela preposição em (na qual) que serve de CPrep. ao verbo pensar: («pensava numa coisa» ou «coisa na qual pensava». De estruturas próximas da que está em apreço diz-se na Gramática da Língua Portuguesa de Maria Helena Mateus e outras que se trata da «Reconstrução de uma estrutura clivada-Q». As autoras ilustram com o exemplo: «É do filho da Maria que ela gosta.» pág. 690.

Poderemos, pois, dizer que se trata de uma expressão correta do ponto de vista sintático.

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Pergunta:

Sobre o período «Si o incitavam a falar exclamava: – Ai! Que preguiça! ... e não dizia mais nada.» [de Macunaíma, de Mário de Andrade], pergunto:

1) Há oração nos termos «Ai!» e «Que preguiça!»?

2) Se houver, quais os verbos que estão implícitos?

3) Quantas orações existem no período?

4) O período é misto?

5) A oração «Si o incitavam a falar» é oração subordinada adverbial condicional?

Obrigado.

Resposta:

O excerto que apresenta é de análise difícil e, eventualmente, controversa, pois não se trata de um período tipicamente analisado em sintaxe, pela pontuação usada e pela entoação que implica.

Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, associa período a enunciado e refere que os enunciados podem ter designações diversas, dependendo do sentido que pretendem veicular: declarativo ou enunciativo, interrogativo, imperativo-exortativo, vocativo e exclamativo (p. 407 – 37.ª ed., 2001).

Bechara diz ainda que «Entre os tipos de enunciados há um conhecido pelo nome de oração, que pela sua estrutura, representa o objeto mais propício à análise gramatical, por melhor revelar as relações que seus componentes mantêm entre si, sem apelar fundamentalmente para o entorno [situação e outros elementos extralinguísticos] em que se acha inserido. É neste tipo de enunciado chamado oração que se alicerça, portanto, a gramática…» (p. 407 – 37.ª ed., 2001).

Se for seguida a descrição de Bechara, idealmente, não se selecionam exemplos como o que está em análise para estudar, salvo num nível muito elevado…
Feita esta ressalva, tentar-se-á analisar o exemplo em apreço, tendo consciência de que essa análise poderá ser objeto de polémica e interpretação diferente.

Vejamos ponto a ponto:

1) Há oração nos termos «Ai!» e «Que preguiça!»?

Bechara distingue os conceitos frase e oração, aproximando frase de enunciado num nível extrassintaxe e considerando oração «uma unidade onde se relacionam sintaticamente seus termos constituintes e onde se manifestam as relações de ordem e recção que partem do núcleo verbal e das quais se ocupa a descrição gramatical» (p. 540, 37.ª ed.).

Pergunta:

Na frase apresentada, a palavra destacada poderá ser usada?

«O mar é um meio de locomoção para os barcos.»

Obrigado.

Resposta:

O contexto em que a palavra surge não é o apropriado ao seu significado.

Importa, antes de mais, assinalar que, na frase em apreço, o termo locomoção não surge isolado, como em «A locomoção é uma função que permite a um animal deslocar-se.» Surge, antes, numa expressão complexa, que veicula um sentido específico: «meios de locomoção» integrando os diversos meios (carros, barcos, bicicletas, aviões) de que o homem dispõe para se deslocar, embora a deslocação seja uma característica comum a todos os animais.

Os diversos meios de transporte, por seu lado, usufruem de infraestruturas, ou vias de locomoção (rodoviárias, aquáticas ou aéreas) onde a sua deslocação é facilitada.

O mar pode ser, de uma forma genérica, uma via de locomoção aquática, ou marítima, mas não se insere no sentido específico que a palavra complexa «meios de locomoção» adquire.

Pergunta:

Qual(is) a(s) regência(s) do verbo intimar?

É aceita a forma «intimar alguém algo», ou sempre há o objeto indireto quando esse verbo apresenta transitividade?

Vocês podem me informar em quais livros tenho acesso a regências verbais?

Resposta:

A expressão correta é «Intimar alguém a algo…»

O verbo intimar pode ser:

a)    Transitivo direto com sentido de «convocar»: «O tribunal vai intimar as testemunhas.» Com sentido de «ordenar» o complemento direto (objeto direto) pode ser uma frase: «O Conselho Administrativo intimou que o operador se demitisse» (frase extraída do Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses, Malaca Casteleiro (org.), Texto Editores.
b)     Transitivo direto e indireto – sendo muitas vezes o complemento indireto (objeto indireto) uma frase – com sentido de «ordenar»: «Intimou o suspeito a responder.»

No verbo intimar parece haver uma ação desencadeada pelo sujeito que tem como objetivo levar outras entidades (pacientes) a, por sua vez, desencadearem outra ação. Efetivamente, mesmo quando é transitivo direto, como em «o tribunal vai intimar as testemunhas», fica subjacente a ação de comparecer que se espera dessas testemunhas. No caso da frase «o Conselho Administrativo intimou que o operador se demitisse», a ação potencialmente desencadeada pelo Conselho Administrativo prevê uma ação por parte da entidade sujeito da frase que é complemento direto – «o operador»: demitir-se.

Há vários dicionários de regência verbal. Além do que vai indicado acima, poderá consultar com proveito o Dicionário Prático de Regência Verbal (Editora Ática), de Celso Luft, ou o Dicionário de Verbos e Regimes (Editor...