Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Cada vez estou mais indignado com a propagação do anglicismo feeling tanto nos meios de comunicação social como na linguagem comum do dia-a-dia. Hoje em dia, para alguém expressar um pressentimento, diz que «tem um feeling». Às vezes pergunto-me se será por desconhecimento da palavra (o que, caso se verificasse, seria deveras preocupante) ou simplesmente para parecer actual...

Resposta:

Compreendo a indignação do consulente, mas seja-me permitido juntar mais alguma informação sobre este anglicismo.

O seu êxito não se assinala só em português, porque também em espanhol encontramos uma forma castelhanizada, filin, embora reservada apenas a nomear um «estilo musical romântico surgido na década de 1940» (dicionário da Real Academia Espanhola).

De qualquer modo, em português, o anglicismo em apreço anda já dicionarizado; por exemplo, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (aparece como  sinónimo de percepção) e no Dicionário Houaiss, que o regista em três acepções:

1. «modo ou capacidade de sentir uma situação; percepção, sensibilidade, sentimento»

2. «modo ou capacidade de expressar musicalmente sentimentos, emoções etc., como se faz esp. no jazz, no blues (termo musicológico)»

3. «sentimento intuitivo; pressentimento, presságio, suspeita»

Como se vê, há muitos termos vernáculos em alternativa a feeling. Mas a vida social está sujeita a tendências e preferências colectivas de que a moda parece ser uma das faces. As palavras também estão sujeitas a estes fenómenos, mais a mais quando se trata de adoptar palavras de uma língua que está a conseguir na cultura de massas o que tem conseguido no mundo da economia e das ciências.

Pergunta:

Depois de anos de investigação mantenho a mesma dúvida. Gostaria de saber se me podem auxiliar na origem do apelido Caleiro.

Resposta:

O apelido/sobrenome Caleiro terá surgido, à semelhança de muitos outros, como alcunha alusiva à ocupação profissional de um indivíduo. É o que diz José Pedro Machado, no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa:

«Ant[iga] alc[unha]. Do s[ubstantivo] c[omum] caleiro, «dono ou trabalhador de fornos de cal.»

No Tratado das Alcunhas Alentejanas (Lisboa, Edições Colibri, 2003), de Francisco Martins Ramos e Carlos Alberto da Silva, confirma-se esta origem por vários casos de atribuição do nome como alcunha:

«A visada herdou a alcunha da mãe[,] que fazia cal (Évora); homem que foi caiador (Almodôvar); alcunha aplicada a um homem muito pobre (Moura); o receptor vende cal (Moura, Viana do Alentejo, Sousel, Monforte, Mora e Redondo); designação colectiva atribuída aos habitantes da sede de concelho pelo facto de alguns deles se dedicarem à venda de cal nas aldeias (Moura). Existe também em Aljustrel, Alandroal e Ponte de Sor.»

Pergunta:

Escreve-se, pela nova ortografia, "sensório-motor", ou "sensoriomotor"?

Obrigada!

Resposta:

Continua a escrever-se sensório-motor. Para dúvidas sobre a ortografia das palavras em português do Brasil, deve consultar o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, cuja 5.ª edição, conforme o novo Acordo Ortográfico, está disponível no sítio da Academia Brasileira de Letras.

Pergunta:

Uma vez que existem obras de carácter normativo para a língua portuguesa que permitem a forma intoxicar (em que o x tem valor de "ch"), será que é igualmente permitido dizer tóxico ("tóchico") e toxinas ("tochinas")?

Resposta:

A pronúncia do x de tóxico como o x de baixo (consoante fricativa lâmino-pré-palatal surda, cujo símbolo fonético é [ʃ]; cf. António Emiliano, Fonética do Português Europeu: Descrição e Transcrição, pág. 107) não está registada nem no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa nem no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, os quais transcrevem essa palavra como [`tɔksiku]. O mesmo acontece com toxina, transcrita como [`tɔksinɐ]. Por isso, recomenda-se a pronúncia com [ks].

Pergunta:

Repetidamente se tem afirmado aqui que «ter que ver com» está correcto e «ter a haver com» está errado. Nunca vi, na argumentação, qualquer referência ao latim para consubstanciar essa afirmação. Porquê? O latim não nos pode ajudar aí?

Por outro lado chamo a atenção de que o equivalente em inglês é «this has nothing to DO with that», e em holandês é «dit heeft daar niets mee te MAKEN». Em ambos os casos, os verbos (to do e maken) estão mais próximos do sentido de haver do que de ver, o que pode indiciar que a vossa interpretação pode não estar correcta. Quererão V. Exas. voltar a este assunto?

Resposta:

Sobre as origens latinas da expressão portuguesa (sinónima de «dizer respeito a») e das suas equivalentes noutras línguas de origem europeia, não encontro informação clara. Uma tradução latina acessível de «ter que ver com» ou «ter a ver com» parece ser feita com o verbo pertinēre («estender-se até, ir até, chegar a; tender a, ter por fim, visar a; referir-se, dizer respeito a», Dicionário Houaiss, s. v. ten-), o qual, como se vê, é uma unidade vocabular, mas não uma expressão fixa de dois ou mais termos. Tampouco acho elementos sobre uma hipotética origem no latim vulgar ou no latim usado como língua franca, administrativa e científica, em grande parte da Europa; supondo que estas variedades do latim tiveram influência sobre a genaralidade das línguas europeias (românicas ou não), seria de esperar que esta conjectura permitisse compreender um pouco melhor as semelhanças e dissemelhanças entre a expressão portuguesa e as suas equivalentes. Trata-se de uma investigação por fazer.

Já não me parece válido invocar o inglês e o neerlandês para apoiar a legitimidade de haver em lugar de ver na expressão em apreço, porque o que mostra a correspondência termo a termo entre as três expressões é o seguinte:

a) o verbo inglês have (has) e o neerlandês hebben (heeft) traduzem-se por ter;

b) o verbo inglês do e o neerlandês maken traduzem-se por fazer;

c) dizer que fazer está mais próximo de haver do que de ver é uma afirmação apressada, porque não se diz de que ponto de vista é avaliada essa proximidade semântica: por exemplo, a afinidade com haver pode igualmente relevar de certa...