Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Levou (ou levaram?) 55 anos para que a situação retomasse sua normalidade.»

Seria «levou», ou «levaram 55 anos»?

Se alterasse para demorar, a resposta seria a mesma?

Resposta:

Nesse contexto, se o tempo que transcorre não é referido a nenhuma entidade («O João levou/demorou 55 anos a escrever este livro»), então o verbo é usado impessoalmente, isto é, só na terceira pessoa do singular se conjuga, como o verbo haver, também em expressões de tempo («há 55 anos»). Por conseguinte, as frases correctas são «levou 55 anos para que a situação retomasse sua normalidade» e «demorou 55 anos para que a situação retomasse sua normalidade».

Pergunta:

Gostaria de uma frase (como exemplo) onde fosse empregado um verbo no particípio flexionado em grau. Bem sei que os verbos quando estão na forma nominal flexionam em gênero, número e grau, porém não consigo uma frase como exemplo, e as que crio ficam estranhas.

Desde já agradeço a compreensão.

Resposta:

Se um particípio passado varia em grau, então é porque já não é usado como tal, mas, sim, como adjectivo. Por exemplo, a palavra cansado é particípio passado do verbo cansar, mas também surge como adjectivo, pelo que actualmente a situação se apresenta assim: como particípio passado, é impossível a variação em grau (não se diz «tinha-se cansadíssimo»); mas, como adjectivo, é compatível com os graus comparativo e superlativo («está mais cansado», «está muito cansado/está cansadíssimo»).

Pergunta:

«Tudo ao molhe em Ypres.»

Este título de uma notícia da revista portuguesa de desporto automóvel Auto Sport, edição de 12 de Junho, página 17, está correcto?

O articulista queria referir-se ao facto de que no Rali de Ypres (Bélgica) estariam muitos inscritos, muitos carros em prova e presentes muitos favoritos à vitória.

Será que não deveria dizer «Tudo ao molho», que julgo ser a expressão mais correcta e que sempre ouvi dizer? O facto de se tratar de um jornalista da Madeira a escrever a notícia, onde é muito frequente colocar o e em vez do o no fim das palavras, não terá a ver com isso? É, de facto, muito comum os madeirenses, incluindo muitos jornalistas que o escrevem nos seus jornais e falam nas suas rádios e na televisão local, dizerem «tudo ao molhe» e «não tudo ao molho». Afinal, o que está correcto?

Resposta:

Não é só na Madeira que se diz «tudo ao "molhe"», a deturpação também me parece corrente no continente. A forma correcta da frase parece ser «tudo ao molho» ou «todos ao molho» (molho, com ó aberto, sinónimo de feixe), no sentido de «toda a gente junta, numa grande confusão», costumando terminar com «e fé em Deus»; aplica-se normalmente a situações em que reina a confusão e o improviso, sem hipótese de planeamento. Mas não encontro a expressão registada nem em dicionários gerais nem em dicionários de expressões idiomáticas nem em prontuários. No Corpus do Português de Mark Davies e Michael Ferreira, a expressão tem quatro ocorrências (correspondentes às formas «todas ao molho», «tudo ao molho», «todos ao molho» e simplesmente «ao molho»), todas provenientes de textos publicados nos anos 90 do século passado, facto que me leva a supor tratar-se de uma frase fixa relativamente recente.

 

N.E.– Molho, no sentido em apreço – o líquido usado na culinária –, pronuncia-se com o primeiro o fechado, tanto no singular como no plural. Já a palavra homógrafa, com o sentido de «feixe», «braçada» ou «conjunto de coisas agrupadas», pronuncia-se com o o aberto, no singular como no plural.

Pergunta:

Na oração «Ele descreve o problema num dos trechos da carta a D. Manuel.», qual seria a função sintática da expressão «a D. Manuel»?

Resposta:

Trata-se de um complemento nominal. O Dicionário de Regimes de Substantivos e Adjetivos, de Francisco Fernandes, assim o sugere, quando atribui ao substantivo carta regências construídas com as preposições a e para e a locução prepositiva acerca de, à qual podemos juntar outras palavras e expressões sinónimas como sobre e a respeito de.

Pergunta:

A locução conjuntiva «eis que» só pode ser temporal e jamais causal?

Obrigada.

Resposta:

A sequência «eis que» não é uma locução conjuntiva, é apenas a associação da palavra eis, tradicionalmente classificada como advérbio, à conjunção que, introdutora de orações.1 A sequência em apreço encontra-se descrita por Maria Helena de Moura Neves, no Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora UNESP, 2003):

«1. Eis é palavra que aponta para adiante no texto, constituindo marca introdutora de informação. Significa, aproximadamente, "aqui apresento", "adiante está". EIS a minha história. [...]

2.Quando se segue uma oração, forma-se a expressão "eis que". E EIS QUE as chuvas se intensificaram [...].»

O que o consulente talvez pretenda é a expressão «eis senão quando», que, assumindo valor temporal, mostra também carácter adverbial, com função textual próxima de «eis que», como refere a fonte consultada (idem):

«3. A expressão "eis senão quando", também marca introdutora de informação, tem valor temporal, indicando subitaneidade. Procura que procura, EIS SENÂO QUANDO, numa volta da floresta, depara nada mais nada menos que com um urso [...].»

1 O consulente Fernando Bueno (Belo Horizonte, Brasil) comunica-me gentilmente que no português do Brasil se está a usar «eis que» como locução conjuntiva causal. Como não encontro este uso descrito em obras normativas publicadas no Brasil (por exemplo, a fonte em referência na resposta ou Moderna Gramática Portuguesa de Evanildo Bechara), confirmo que se trata de um uso incorre{#c|}to, não aceite pela norma b...