Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem a que se deve a irregularidade da primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo poder (posso), já que em galego não se verifica a irregularidade (podo).

Obrigada.

Resposta:

Trata-se da conservação de parte da irregularidade que se observava em latim, no presente do indicativo do verbo posse, «poder», originalmente um verbo composto: possum, possumus, possunt, mas potes, potest, potestis. O português, em parte como o italiano, manteve a irregularidade na primeira pessoa do singular. Pelo contrário, o galego e o castelhano regularizaram todas as formas de poder, incluindo a primeira pessoa do singular: podo (galego), puedo (castelhano).

Assinale-se que, na Idade Média, no período galego-português, a forma de primeira pessoa do singular do presente do indicativo era posso, de acordo com Manuel Ferreiro, Gramática Histórica Galega (Santiago de Compostela, Edicións Laiovento, 1996, pág. 331):1

«Fronte á forma medieval posso (PŎSSŬM) de P1 de Presente de Indicativo, aparece no galego común podo [ˈpɔdo] (con vocal tónica aberta como quero) ou [pódo], como os verbos semirregulares con alternancia vocálica na segunda conxugación [...], regularización moderna producida a partir do resto do paradigma deste tempo.»

1 Na citação: «P1» = «primeira pessoa»; em [ˈpɔdo] o sinal de acento tónico está no começo de sílaba, por tecnicamente não ser possível colocá-lo sobre a vogal como no original.

Pergunta:

Depois do verbo intransitivo, se tiver elemento que determine circunstância de tempo, modo, lugar, etc., possui um adjunto adverbial e continua sendo intransitivo. Mas se, por acaso, o que vier depois não for circunstância, por exemplo: «O cão latia para o gato»?

Resposta:

Continua a tratar-se de um adjunto adverbial, desta vez com valor de inclinação ou oposição, segundo Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 447):

Adjunto adverbial de inclinação e oposição — São os adjuntos que expressam a relação de "favor", "ajuda" ou "disposição favorável", muito próximo ao valor benefactivo do dativo, bem como as relações contrárias, de "oposição", "disposição desfavorável".

[...] Para a segunda relação, usa-se a preposição contra ou locuções do tipo:

Esforçava-se por lutar contra os maus pensamentos.

Apesar de para não ser propriamente nem uma locução nem um sinónimo de contra, pode considerar-se que a sua associação a latir, que significa «ladrar», se pode interpretar, com recurso ao conhecimento do mundo (ou enciclopédico), como referente a uma «disposição desfavorável» relativamente a alguém ou alguma coisa (neste caso, um gato, tradicionalmente inimigo dos cães).

Pergunta:

Em relação à vossa resposta à pergunta n.º 29 396, «guepardo» não se trata de um galicismo? Não é um «encosto» à palavra francesa «guépard»? Na década de 70, ofereceram-me um livro de zoologia editado em Portugal (já não posso dizer se era uma tradução, ou se a redacção inicial foi feita em português), e nesse livro eles consistentemente chamavam o animal de leopardo-caçador — frisando claramente que zoologicamante era um animal diferente do chamado simplesmente leopardo. Com o passar dos anos é que eu fui assistindo à moda de chamar o animal de chita (do inglês cheetah), primeiro com o género masculino, mas depois com o género feminino, se calhar por a palavra terminar em a. Afinal, qual é o termo mais «genuinamente» português (com «português», eu pretendo dizer da língua portuguesa, não de Portugal)?

Obrigado.

Resposta:

A palavra guepardo tem realmente origem francesa, segundo o Dicionário Houaiss, que a relaciona com «[o] fr[ancês] guépard (1765) [gapard, 1706], empr[és]t[imo] do it[aliano] gattopardo (início sXVII), de gatto, "gato", e pardo, "leopardo"; o lat[im] cien[tífico] [do] gên[ero] Guepardus (1834) é o nome antigo do gên[ero] Acinonyx». No entanto, é palavra que já existe em português há algum tempo. Por exemplo, Rebelo Gonçalves regista-a no seu Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), a par de chita. O dicionário Aurélio XXI, por seu lado, acolhe guepardo, consignando também chitá, variante de chita. Em suma, a palavra vernácula é, sem dúvida, leopardo-caçador, mas a verdade é que os dicionários sugerem que o uso impôs guepardo e chita como designações do animal em apreço.

Pergunta:

Queria saber qual é a forma exacta para utilizar correctamente «ter tendência»:

«Os jovens têm a tendência a criar amizades», «Os jovens têm a tendência de criar amizades» ou «Os jovens têm tendência a criar amizades».

Obrigada.

Resposta:

O substantivo tendência pode seleccionar dois complementos:

— o sujeito da tendência (alguém/alguma coisa tende...): «as tendências dos jovens»;

— o objecto da tendência (a coisa para se tende): «as tendências (dos jovens) para a moda».

No primeiro caso, a preposição é sempre de. No segundo, a regência pode variar em função do contexto (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa):

a) precedida de artigo definido, de demonstrativos ou possessivos, a palavra ocorre com a preposição para antes de expressões nominais («mencionei a/essa/a sua tendência para a arte») e de ou para, antes de infinitivo («mencionei a/essa/a sua tendência de/para criar arte»;

b) depois de artigo indefinido ou sem qualquer determinante, emprega-se com para antes de expressões nominais [«revelou (uma) tendência para a arte»] e a ou para antes de infinitivos [«revelou (uma) tendência a/para criar arte»].

Pergunta:

Eu e minha família tivemos a oportunidade de conhecer o maior parque aquático do Brasil, localizado nas proximidades de Fortaleza (estado do Ceará). Na verdade, as estruturas desse parque estão situadas no município de Aquirás. Aqui, pois, reside minha dúvida: é Aquirás, ou Aquiraz? Lá no distante Ceará só vi a forma Aquiraz, mas no último volume do famoso Dicionário Caldas Aulete há um vocabulário onomástico que traz a grafia Aquirás. Qual é a maneira correta? Qual é a regra (se existe) que define "ás" ou "az" nos topônimos?

Fico, como sempre, muito grato!

Resposta:

No verbete relativo a aquirasense, o Dicionário Houaiss apresenta a forma Aquirás. Também Rebelo Gonçalves, no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), regista Aquirás. A forma recolhida por José Pedro Machado, no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, é também Aquirás, a que atribui origem obscura.

O Aulete Digital refere, no verbete de aquirasense, que esta esta é «melhor forma que aquirazense», o que significa a base de derivação deste gentílico, Aquiraz, é pior que Aquirás. No entanto, a definição do gentílico no mesmo dicionário corresponde à entrada de aquirazense, cujo artigo acolhe a forma Aquiraz, reflectindo certamente o uso preferencial da forma com -z final.

A dificuldade em identificar a ortografia mais adequada resulta exactamente de não se saber ao certo a origem da palavra. Note-se que o critério etimológico é que permite saber quando escrever -az: rapaz e eficaz são sufixadas com -az final porque evoluíram, respectivamente, de rapace e eficace, palavras latinas no caso acusativo que apresentam a sequência -ace (cf. -az no Dicionário Houaiss). Já a terminação -ás, como em ananás ou aguarrás, tem origem mais difusa, não correspondendo a um sufixo ou sequências latinas com evolução regular para o português.

Deste modo, importa salientar que o uso está a impor a forma Aquiraz. Na perspectiva etimológica, nã...