Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho-me confrontado com a tradução de «near miss sudden infant death syndrome» por síndrome de morte súbita do lactente abortada. Não me parece que o abortada esteja correcto (como em near drowning – que geralmente traduzo por pré-afogamento, mas não sei se correctamente). Existe uma forma mais adequada de traduzir o near miss nestas duas situações? Obrigada.

Resposta:

A forma inglesa near miss não encontra palavra em português que lhe seja equivalente exacto — várias traduções são possíveis em função do contexto. No caso vertente, uma alternativa à expressão apresentada pela consulente pode ser «episódio de quase morte súbita», que ocorre num artigo datado de 1999, disponível na Internet, onde se lê que a expressão deve ser substituída por «evento com aparente risco de vida» (sublinhado meu):

«Os chamados eventos com aparente risco de vida (apparent life-threatening events) ou ALTE foram definidos por Comissão do NIH em 1986 como eventos que aterrorizam o observador, caracterizados por uma combinação dos seguintes sintomas: apnéia (central ou obstrutiva), alterações da coloração da pele (cianose, palidez ou pletora), alteração no tono muscular (geralmente hipotonia), sufocação ou engasgo. Para o observador parece que a criança vai morrer. Esses episódios eram anteriormente denominados de quase morte súbita (near-miss SIDS). A mudança da terminologia foi proposta porque implicava uma associação muito estreita com a Síndrome da Morte Súbita do Lactente (SMSL).»

Noutro artigo médico ocorre «evento de aparente disco de vida», com a confirmação de que a expressão «near miss sudden infant death syndrome» deve ser substituída pela expressão «apparent life threatning event» (ALTE):

«O evento de aparente risco de vida (apparent life threatening event — ALTE), antigo “near-miss SIDS”, é uma entidade diferente da Morte Súbita do Lactente em v...

Pergunta:

Ainda em relação à resposta à questão A pronúncia do plural do substantivo gosto (português do Brasil), colocada por uma consulente brasileira, não poderemos dizes "gostos" com "o" aberto ao referirmo-nos ao plural do famoso "gosto" ("gósto") do Facebook...? Exemplo: «Colocaram muitos "gostos" ("góstos") na minha publicação do mural ontem.»

Obrigado!

Resposta:

É possível, mas trata-se de um neologismo que decorre do uso como substantivo, num contexto muito específico, de gosto (transcrição [ˈgɔʃtu]), primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo gostar . Não estamos, portanto, a falar do substantivo gosto, «paladar, preferência» (transcrição [ˈgoʃtu]).

Pergunta:

[...] [T]enho um outro comentário a fazer [sobre a forma engripar]: [...] à forma "gripar" (com remissão no Houaiss a "grimpar") corresponde o étimo francês "gripper" (na acepção de mecânica), no entanto, o mesmo, bem como outros dicionários — o Priberam, por exemplo — apresentam o verbo gripar como produto de uma formação portuguesa (mesmo se a palavra primitiva tenha entrado na língua portuguesa através de um empréstimo ao francês grippe, atestado em português desde 1881), sendo constituído por gripe+ar, um derivado sufixal, portanto é homónimo do primeiro (por isso mesmo têm direito a entradas diferentes). A forma gripar na acepção de «provocar ou ficar com gripe» é atestada pelo menos desde 1942 e o seu particípio, grippado (sic), desde 1928, como nos informa o Houaiss.

Quanto a engripar, foi-lhe acrescentado o prefixo en- à forma já existente gripar (de gripe+ar e não de gripper), sendo por isso decomposto em: en-+ a base gripe +sufixo -ar, tendo, então todas as características para ser um derivado parassintético, embora me custe a compreender, pelas razões já anteriormente expostas e que conto com a vossa magistral ajuda para a sua resolução.

Ainda a propósito deste tema, teria uma outra pergunta (de resposta bem mais fácil, segundo creio).

Na vossa primeira explicação à minha questão, que remetia então a engripado, foi-me dito que este era "apenas" o particípio passado de engripar, e que engripar...

Resposta:

1. Na verdade, em português europeu, os verbos homónimos gripar, «causar/contrair gripe», e gripar, «avariar devido a peças que aderiram fortemente por falta de lubrificação», têm ambos origem no francês grippe, mas com histórias diferentes. Enquanto gripar se relaciona indirectamente com a palavra francesa, sendo variante de engripar, derivado denominal de gripe (do francês grippe), gripar é adaptação directa do francês gripper, cuja base é grippe. É o que se conclui da consulta não só dos dicionários referidos pela consulente, mas também do Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, e do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa.

2. Note-se que a lexicografia brasileira aponta algumas diferenças em relação ao uso português. Com efeito, a forma engripar, «causar/contrair gripe», é assinalada como lusismo (cf. Dicionário Houaiss e Dicionário Unesp do Português Contemporâneo), registando-se gripar como forma sinónima usada no Brasil (cf. Aulete Digital). Em contrapartida, engripar é equivalente a «avariar...».

3. Voltando ao âmbito do português europeu, a relação de engripar, «causar/contrair gripe», com a sua variante gripar, poderia levar a supor que a primeira forma não fosse um derivado parassintético, mas, sim, uma palavra prefixada cuja base seria gripar. Alina Villalva ("Formação de palavras: afixação", in M.ª H. Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 9...

Pergunta:

Com a entrada em vigor do Novo Acordo Ortográfico, surge a dúvida: «Narrador não participante»/ «não-participante», por qual optar?

Atendendo a que «não participante» surge como adjetivo (qualifica o narrador), acredito que o emprego do hífen se deve manter, mas a dúvida permanece.

Perdoem-me a redundância mas, da leitura que fiz do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa e de várias pesquisas que realizei paralelamente, não consegui tirar uma “conclusão conclusiva”.

Agradeço, desde já, a disponibilidade!

Um bem-haja.

Resposta:

O uso de hífen com não, associado a substantivos ou adjectivos, não tem sido nem vai ser obrigatório. Com efeito, o Acordo Ortográfico de 1990 é omisso sobre o assunto, pelo que as condições de hifenização para este caso são as descritas pelo Dicionário Houaiss, já referidas noutras respostas:

[...] em port., `um tratado de não agressão com a Argentina´ ou `um tratado de não-agressão com a Argentina´, `o gênero não animado em latim arcaico´ ou `o gênero não-animado em latim arcaico´ e quejandos demandam dificilmente a compactação morfológica do hífen por motivos funcionais ou semânticos; tal compactação parece mais acentuada no modelo não + subst. do que no modelo não + adj.; por outro lado, no modelo não + verbo ela praticamente inexiste; de qualquer modo, a questão parece mais estilística do que gramatical; é dentro dessa carência de delimitação que o usuário da língua port. (e seus lexicógrafos) tem que compadecer-se com sua convenção ortográfica; na prática, assim, há larga margem de decisão pessoal, de sabor especialmente estilístico, entre um objeto e um não objeto ou um não-objeto, entre uma coisa e uma não coisa ou uma não-coisa, em suma, entre um substantivo x e um não x ou um não-x; o que se diz, aí, de um subst. da língua, diz-se de todos e tb. de adj. (é um feliz achado, é um não feliz achado e é um não-feliz achado) [...].

Ou seja, «não-participante» e «não participante» são e vão continuar a ser formas igualmente corre...

Pergunta:

Após ler com cuidado a resposta Concordância com «a gente», surgiu uma dúvida: se o referente extralinguístico de «sua majestade» fosse um homem, o que lhe deveria dizer num bom português «Sua Majestade está louca»? A língua portuguesa não permite a silepse de género?

De antemão, agradeço-lhes a sua douta resposta.

Resposta:

A resposta em causa refere-se a uma forma pronominal que caracteriza o registo informal e que, por isso, apresenta oscilações, permitindo a concordância semântica (ou siléptica).

Noutro tipo de registo, também é possível a silepse de género, como diz Evanildo Bechara, na Moderna Gramática da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2002, pág. 547):

1) [Concordam pelo sentido] [a]s expressões de tratamento do tipo de V. Ex.ª, V. S.ª, etc.:          

V. Ex.ª é atencioso (referindo-se a homem)

  "       "  atenciosa (referindo-se a mulher)

OBSERVAÇÃO: Quando se junta um adjetivo a tais formas de tratamento, tal adjetivo fica no gênero da forma de tratamento:

Sua Majestade fidelíssima foi contrariado pelos representantes diplomáticos.