Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao ler o livro em epígrafe (1913, Ed. Aillaud, Alves & Cia, p. 141), deparei-me, no conto intitulado "O Solar de Montalvo", de Aquilino Ribeiro, com o seguinte excerto:

«Na sala que abria para o pomar, a mão dum finado ardia numa luz resplendente e alva que cegava.»

A expressão «mão do finado» surge também no conto homónimo de Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português).

Procurando o significado da expressão «mão de finado», somente encontrei o sentido de «avarento». No entanto, em ambas as obras acima citadas parece que o sentido não se refere a um adjetivo, mas sim a um substantivo, o qual não consegui descodificar.

Assim sendo, venho solicitar ajuda para conhecer o sentido correto da expressão «mão de finado».

Resposta:

Os dicionários1 registam efetivamente «mão de defunto» como «pessoa avarenta» e «pessoa azarada» e sinónimo das expressôes «mão de leitão», «mão de vaca», pão-duro.

Contudo, como bem observa o consulente, o contexto em que figura a expressão leva a inferir que não é esse o significado aí associado à expressão. Com efeito, «mão de finado» ocorre neste caso em referência a uma espécie de talismã lendário ou instrumento mágico. Trata-se de uma crença documentada na literatura popular portuguesa, tal como acontece noutras tradições orais da Europa, como observava o filólogo, etnógrafo e pedagogo Adolfo Coelho (1847-1919)1:

«Acha-se muito espalhada em Portugal e em toda a Europa românica (sem o podermos asseverar positivamente para o domínio romeno) de onde passou para a Inglaterra e Alemanha, a superstição de que uma mão de morto (em regra de um enforcado), preparada de certo modo, ardendo ou com uma vela acesa segura, serve aos ladrões para conservar no sono as pessoas cujas casas querem roubar.»

O mesmo autor menciona a expressão inglesa hand of glory, que vem a ser o mesmo que o português «mão de finado»:

«[...] a mão de glória (hand of glory), nome com que aquela mão mágica é conhecida na Inglaterra [...] é só chamada entre nós mão de defunto, de finado, ou ainda mão refinada; uma inspecção dos textos reunidos em Ducange-Henschel [glossário] e no dicionário de Littré mostraria que main-de-glore é uma alteração de mandragore, mandragora, por etimologia popul...

Pergunta:

«Redescubro, contigo, o pedalar eufórico/ pelo caminho que a seu tempo se desdobra,/ reolhando os beirais – eu que era um teórico/ do ar livre – e revendo o passarame à obra.»

Excerto do poema "Elogio Barroco da Bicicleta", de Alexandre O'Neill.

Qual é o significado da palavra passarame neste contexto? De onde se origina?

Obrigada.

Resposta:

Significa o mesmo que passarada.

Trata-se de uma palavra possível, de que o poeta se apropriou, provavelmente porque o sufixo -ame tem um valor expressivo depreciativo que quebra a associação convencional positiva ou encarecedora do amor à natureza.

Segundo o Dicionário Houaiss, o sufixo -ame, com origem no sufixo latino -amine-, figura «em vários vocábulos, generalizado depois com a noção principal de 'coleção, coletivo, porção', aumentativo e, às vezes, pejorativo: alceame, balame, baldrame, bicame, cabelame, cartuchame, cavername, cordame, correame, cuiame, dinheirame, encame, enxame, esparrame, espigame, esteirame, filame, fivelame, folhame, formigame, friame, girame, gravame, ladeirame, madeirame, massame, matame, moçame, monhezame, mulatame, mulherame, pelame, pername, poleame, pinheirame, quartilhame, raizame, talhame, torreame, varame, vasilhame, velame, vergame».

Pergunta:

Há dias recebi uma mensagem de que transcrevo este excerto:

«Temos ainda pendente o assunto X, pelo que o pressinto para a possibilidade de, quando regressar de Paris, podermos reunir para tratarmos disso».

Confesso que nunca me deparei com este uso do verbo pressentir que parece estar ali por prevenir, avisar ou alertar.

Conjeturei, apenas como hipótese, uma possível contiguidade semântica entre pressentir e avisar ou alertar. Um pressentimento acaba por ser uma espécie de aviso e, portanto, por extensão, usar-se-ia o verbo pressentir por avisar.

Para além desta hipótese porventura, ou certamente, rebuscada ou fantasiosa, o que pergunto é: conhecem este uso peculiar do verbo pressentir?

Muito obrigado mais uma vez.

Resposta:

O caso apresentado é insólito e pode muito bem configurar não mais do que uma troca involuntária de verbos.

Na verdade, na escrita de textos eletrónicos acontece muitas vezes que o dicionário automático de apoio à escrita apresente soluções lexicais de configuração inicial semelhante, como é o caso de prevenir que partilha com pressentir o elemento pre- e que, como verbo da 3.ª conjugação (terminada em -ir), também exibe a vogal i na 1.ª pessoa do singular do presente do indicativo: pressinto, previno.  Será, pois, plausível que o uso em questão resulte de um erro induzido pelo uso apressado das letras tecladas e das opções facultadas pela ferramenta de texto num processador de texto.

No entanto, pode também pensar-se que não há gralha (eletrónica ou outra) e que o uso em questão manifesta a intenção de tirar partido das potencialidades sintáticas e semânticas do verbo pressentir. Com este pressuposto, deve observar-se que se trata de um caso muito marginal e algo discutível.

Na verdade, enquanto prevenir é um verbo que tem uma componente semântica causativa, pois denota uma ação que leva alguém a outra ação ou a mudar de estado, com o verbo pressentir, à semelhança de outros verbos de perceção e de crença e conhecimento, o sujeito («eu pressinto») é sede (experienciad...

Pergunta:

Eu gostaria, por gentileza, que vocês me enviassem uma lista robusta de verbos essencialmente pronominais, isto é, aqueles que serão obrigatoriamente acompanhados de pronome oblíquo átono.

Às vezes, tenho dificuldades em diferenciar quando o pronome oblíquo átono exerce função reflexiva propriamente dita e quando o pronome oblíquo átono é parte integrante do verbo. Por isso, peço a vocês algumas informações que me ajudem a diferenciar de maneira precisa essas duas funções.

Deixo aqui também meus agradecimentos, pois o site está me ajudando bastante na busca para entender melhor a língua portuguesa.

Desde já, agradeço.

Resposta:

Não foi aqui possível identificar a "lista robusta" que foi pedida, mas pode-se apresentar um teste.

Os verbos reflexivos permitem o reforço do pronome reflexo:

(1) Lavei-me.

(1) (a) Lavei-me a mim mesmo.

Já os verbos que exibem se inerente (o pronome que integra o verbo) não são compatíveis com o reforço pronominal ilustrado em (1)(a):

(2) Esforcei-me.

(2)(a) *Esforcei-me a mim mesmo.

(o * indica frase incorreta)

Observe-se, porém, que a aplicação do teste acima pode não ser muito conclusiva com verbo que parecem a meio caminho entre os verbos reflexivos e os verbos de se inerente:

(3) Lembro-me da minha infância. – ? Lembro-me a mim próprio da minha infância.

(4) Sinto-me satisfeito. – ? Sinto-me a mim próprio satisfeito.

(5) A porta fechou-se. – ? A porta fechou-se a si própria.

(6) Estas calças lavam-se bem. – ? Estas calças lavam-se a si próprias bem.

Estes casos constituem um subtipo dos verbos de se não reflexo e distribuem-se por:

a) verbos aos quais se associa um complemento preposicionado ou um predicativo: «lembro-me da minha infância», «sinto-me satisfeito»;

b) verbos que revelam alternância entre usos causativos e usos em que se exprime mudança de estado (geralmente não voluntária): «Fechei a porta/a porta fechou-se» [há verbos deste tipo que até permitem a supressão do se: «a loja fechou»];

c) verbos que ocorrem no presente ou no imperfeito (indicativo ou subjuntivo) com se associado no intuito de denotar uma propriedade característica do sujeito: «Estas calças lavam-se/lavavam-se bem» (= estas calças são facilmente laváveis).

Refira-se igualmente os casos de se que não são reflexos nem inerentes:

– o se recíproco, afim do se reflexo, bem como o s...

Pergunta:

Como distingo um sendo quantificador numeral ou sendo determinante artigo indefinido?

Muito obrigada.

Resposta:

Depende muito do contexto, e não há uma propriamente uma regra.

Geralmente, para atribuir-se o valor numeral a um, é necessário que textualmente se fale de outros numerais:

(1) Ontem comprei um melão e hoje comprei dois.

O valor numeral de um também está associado a quantificadores como «um pacote de», «um saco de», «um litro de». Note-se, porém, que, em muitas frases, um e uma podem ser ambíguos, ou seja, podem ser interpretados quer como numerais, quer como artigos indefinidos:

(2) Há bocado, apareceu um cliente.

Só por si, a frase (2) é ambígua, e é necessário recorrer ao contexto, como no seguinte exemplo:

(3) Aqui na loja nunca passa ninguém, mas, há bocado, apareceu um cliente, depois, chegaram quatro e, de repente, entraram 30.

Em (3), um é numeral cardinal (mas não se exclui que possa ser artigo definido).

(4) Aqui na loja nunca passa ninguém, mas, há bocado, apareceu um cliente que queria comprar um tinteiro com cartão de crédito. O cliente tinha ar fatigado.

Em (4), um é artigo indefinido (embora não se exclua que possa ter função quantificadora) e permite apresentar a figura do cliente no discurso.

É de realçar que, com certos nomes não contáveis – geralmente, os chamados "abstratos" como paciência, educação ou calor – não são compatíveis com o numeral cardinal (não se diz, geralmente, «um calor, dois calores, três calores») e, portanto, infere-se que a associação de um ou uma a tais nomes seja indicativa do uso do artigo indefinido (ainda que este com valor intensivo e exclamativo: «está um calor!», «tens uma paciência!»).

Em suma, este é um tópico de certa complexidade, e, fora do uso em contexto, são poucos os critérios prévios que permitam distinguir um