A gramaticalização é um processo de mudança lingu[ü]ística que afecta o conteúdo semântico de uma palavra ou expressão no sentido de o seu significado lexical perder importância em relação ao seu significado gramatical. A este processo pode associar-se outro que determina alterações fonéticas na expressão original. Muitos advérbios, conjunções e preposições surgiram através da gramaticalização. Por exemplo, o aparecimento do advérbio e conjunção embora enquadra-se num processo de gramaticalização. Como explica Paul Teyssier (Comprendre les Langues Romanes, Paris, Editions Chandeigne, 2004, págs. 85/86), a origem desta palavra é a locução «em boa hora», porque antigamente se acreditava que para qualquer acção ou deslocação, e sobretudo para uma viagem, havia momentos propícios e outros desfavoráveis. Em vez de se empregar simplesmente o verbo ir-se, como em «vai-se», começou a dizer-se «vai-se em boa hora», dando depois origem ao advérbio embora. Note-se que também se recorria a «em hora má» para exprimir má vontade para com outrem, expressão que evoluiu para “eramá”, “ieramá” e “aramá”, frequentes em Gil Vicente (Said Ali, Gramática Histórica da Língua Portuguesa, São Paulo, Edições Melhoramentos, pág. 189).
A expressão «em boa hora» também exprimia uma ordem ou um desejo, como em «embora esteja cansado», que significava inicialmente «em boa hora esteja (ele) cansado», isto é, «é bom que ele esteja cansado». Mas é Said Ali (op. cit., pág. 190) que dá magistralmente conta do processo de evolução semântica de embora como conjunção concessiva (mantive a ortografia original; itálico do original a negro):
«[…] Não se usa este advérbio sómente para augurar bem ou desejar hora propícia às empresas humanas. Introduziu-se também em orações optativas e outras para denotar que se concede a possibilidade do fato, ou que o indivíduo que fala não se opõe ao seu cumprimento. Da alteração semântica dão testemunho os seguintes passos:
Ria embora quem quizer, que eu em meu siso estou (Gil Vicente) – Respondeu por vezes que morressem muito embora, que melhor era que morressem cá que no sertão, porque morriam baptizados (Vieira, Cartas 1, 118) – O que está mais longe perca-se embora (ib. 1, 463) – As promessas do premio dilatem-se embora (Vieira, Serm. 2, 395) – Honrem-se embora com essas arvores os seus montes, que os nossos valles não hão mister quem procure a sua exaltação (ib. 5, 360) – Mate-me embora, comtanto que seja imperador (ib. 5, 466) – Mas Francisco Xavier, venha-lhe embora a tentação dormindo, que dormindo e acordado, sempre está seguro (ib. 8, 104).
[…] Desta prática veio o transformar-se, em português hodierno, o advérbio embora em conjunção concessiva, mudando-se naturalmente a contextura das orações. A principal passou a servir de subordinada, e a correlata despe-se da partícula que, convertendo-se em principal, dizendo-se, v.g.: embora honrem essas árvores os seus montes, os nossos vales não hão mister quem procure a sua exaltação. Em Filinto Elísio 14, XIX já se encontra: embora cumpra o traductor com esses três deveres.»