Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A respeito da consulta formulada, em 3/6/2011, pelo Sr. Luiz Eduardo Bizin, professor em Sydney, Austrália, sobre a origem da palavra saudade, o Sr. Carlos Rocha nos dá excelente aula sobre o tema. Em resposta anterior, sobre o mesmo assunto, no Ciberdúvidas, foi feita menção ao verbete no magnífico dicionário de José Pedro Machado. Tenho esse dicionário e em sua epígrafe Machado diz que «Cabe ao [dicionário] de Antenor Nascentes o pioneirismo dos dicionários portugueses só etimológicos. De onde se depreende que todos os mais são e serão seus seguidores». Nascentes parece ter se dedicado com muito afinco ao vocábulo, e como esse dicionário é de 1932, reimpresso em 1955, mas hoje raro, tomo a liberdade de aqui reproduzir tudo que ele apurou sobre essa tão rica particularidade da língua portuguesa, sem correspondência semântica idêntica em qualquer língua; a mais semelhante que encontrei foi no catalão, enyorança, mas ainda assim incompleta porque não exige a vontade de rever.

«SAUDADE – Do lat. solitate, solidão, desamparo, que deu o arc. soedade, soidade, suidade, que sofreu influência de saudar (Diez, Dic., 486, M. Lübke, REW, 8074, A. Coelho, Pacheco J., Gram. Hist., 153, Pacheco e Lameira, Gram Port., 347, Leite de Vasconcelos, Opúsculos, I, 216, G. Viana, Apost., II, 407, Ot...

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, muito agradeço o precioso apontamento que enviou, porque de facto é difícil ter acesso ao Dicionário Etimológico de Antenor Nascentes.

Só queria deixar uma observação, que diz respeito à palavra saudade: é certo que é uma particularidade da língua portuguesa, mas penso que todas as línguas se assemelham nas particularidades que exibem em diferentes níveis de análise (lexical, fonológico, morfológico, sintáctico, pragramático, etc.). É, pois, comum que cada língua possua palavras, expressões ou construções, com valor referencial concreto ou abstracto, que são intraduzíveis numa língua diferente. No que aos sentimentos se refere, então, essa divergência é muito frequente, mas também não se pode dizer que entre as línguas de uma mesma área cultural ou de áreas culturais vizinhas não seja impossível encontrar traduções, ainda que, como indica o autor, se trate de aproximações. Além disso, quando se fala de uma palavra, é necessário, por um lado, ter em conta a sua companhia, isto é, o seu contexto, e, por outro, a relação com palavras que partilhem o mesmo radical.  Ora, essa é a faceta que mais varia de língua para língua, uma vez que em línguas diferentes palavras equivalentes ocupam muitas vezes contextos diferentes.

Assim, pegando no exemplo de enyorança em catalão, que tem a forma castelhana añoranza, verifica-se que tem um significado próximo do de saudade: «Pena o dolor per l’absència, per la pèrdua d’alguna cosa o d’alguna persona» (

Pergunta:

Dentro da análise descendente existem três variantes que não consigo compreender: macroestrutura global, macroestruturas intermédias e microestruturas.

Isto insere-se na competência textual?

Resposta:

Carlos Reis e Ana Maria Macário Lopes, no Dicionário de Narratologia (Coimbra, Almedina, 2002), no artigo dedicado ao conceito de macroestrutura, citam o investigador Teun van Dijk (1983, pág. 55), que define a macroestrutura de um texto como «uma representação abstracta da estrutura global de significado de um texto».

A respeito de macroestruturas intermédias, Reis e Lopes (op. cit.) observam o seguinte:

«É possível reconhecer níveis intermédios de macroestruturas, uma vez que num texto há um conjunto de frases que formam um bloco consistente, formando sequências [...]. Tais sequências projectam uma representação semântica global, uma macroestutura intermédia que equivale à noção intuitiva de "tópico".»

Sobre as microestruturas, também explicam que (ibidem):

«[...] As sequências funcionam [...] como partes interligadas de um todo a que se vinculam: esse todo é a macroestrutura mais geral do texto, responsável pela projecção e articulação linear das frases que integram a superfície textual. Por outras palavras, a macroestrutura que contém a informação essencial do texto é essencial do texto é comparável a um núcleo semântico a partir do qual, mediante a aplicação de certas regras de projecção, se geraria o conjunto de frases que perfazem a superfície textual, e às quais se dá o nome de microestruturas [...] textuais.»

Pergunta:

Qual a origem da expressão «letras são tretas»? Alguém sabe de referências antigas a esta expressão ou de autores consagrados que a ela tenham recorrido?

Resposta:

Não consegui identificar a origem deste dito ou provérbio. O mais que posso afirmar é que o dito já existia nos anos 80 do século passado, quanto a mim, coincidindo com a decadência da cultura literária de tradição francesa e a rápida ascensão da cultura tecnológica de inspiração norte-americana.

Pergunta:

Não se trata estritamente de português, mas de adequação do modo de expressão às contingências da realidade.

Eu conto.

Aconteceu que, indo o MacGyver acompanhado de uma competente guarda-florestal em passeio, julgo que no Canadá, eis senão quando se lhes deparam pegadas no chão húmido. Apreciada a profundidade das marcas, aparece na legenda do filme: são de urso, tem cerca de 363 kg.

Admirável acuidade, precisão extraordinária, digo eu, que sou um ignorante.

Afinal vim a apurar que apenas se pretendia dizer que o presuntivo animal deveria pesar aproximadamente 800 lb.

Poderia, por favor, Ciberdúvidas, tirar-se dos seus cuidados e informar os tradutores a martelo da estupidez, recorrente, de traduzir as unidades convertidas ao rigor de uma fiada de 3 algarismos significativos quando, no contexto, tal não é permissível — digo a reforçar, tal é absolutamente anedótico, risível?

Agradeço. Agradecemos todos — os poucos que ainda se batem por alguma qualidade na intocável, e cheia de soberba, comunicação social.

Resposta:

De fato, quando se usa a locução prepositiva «cerca de», na acepção de «quase, aproximadamente», é estranho que se procure exatidão na medida ou na quantidade referida. Sobretudo quando se trata de grandezas superiores às dezenas, espera-se assim que surja um número redondo e não o número exato que representa uma dada grandeza: «cerca das 12h00 horas», «cerca de 200 pessoas», «cerca de 350 gramas». Resulta, portanto, um tanto contraditório que se diga «começámos a almoçar cerca das 12h57», ou que «estavam presentes cerca de 235 pessoas» ou ainda que «o urso pesa cerca de 363 kg», porque o que se pretende dizer na realidade é que «começámos a almoçar às 12h57», que «estavam presentes 235 pessoas» e que «o urso pesa 363 kg». Assinale-se, contudo, que «cerca de» pode ocorrer com datas históricas: «dois obeliscos foram transportados cerca de 14 a.C.».

 

N. E. (5/06/2017) – Na primeira linha, foi corrigida a expressão «locução adverbial», em referência a «cerca de», tendo sido substituída por «locução prepositiva». Na verdade, é de uma locução prepositiva que se trata – mais exatamente de uma locução prepositiva de base adverbial (cf. Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, p. 1504), uma vez que é constituída por um termo principal, o advérbio cerca, e uma preposição, de.

Pergunta:

[...] [F]ico confundido com ditos na TV destes:

«O país está em dificuldade!»

Não seria melhor dizer «o país está com dificuldade»?

Penso assim porque nunca ouvi ninguém dizer que está «em dor de cabeça»!

Ainda hoje ouvi dizer «salários em atraso». Não seria mais correto dizer «salários atrasados»? Ou «em atrasos»? Salários é plural.

Também não me lembro de ning,uém dizer que os comboios estão «em atraso»! Mas, sim, «atrasados».

[...]

Se quiserem ter a bondade de me esclarecerem, ficaria muito reconhecido.

Muito obrigado e muitas felicidades.

Resposta:

As suas observações são pertinentes, mas é necessário ter em conta que na língua portuguesa — como nas outras línguas — há muitas expressões que se fixam no uso. Nos casos que aponta, deve considerar-se que:

1. Com o verbo estar, tanto pode dizer «em dificuldade» (ou «em dificuldades») como «com dificuldades» (neste caso, equivalente a «tem dificuldades»). A expressão «em dificuldade(s)» segue o exemplo de outras: «em abundância», «em condições», «em forma».

2. A sequência «salários em atraso» é hoje uma expressão fixa, que só permite a substituição de salários por palavras suas sinónimas ou afins, relacionadas com questões financeiras ou salariais (p. ex., «vencimento», «mensalidades», «pagamento»). É por isso que não se diz «comboios em atraso».