Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Há alguma explicação na história da língua portuguesa para que verbos como aspirar, assistir e obedecer não admitam o pronome oblíquo lhe ou sofram restrições quanto a esse pronome?

Obrigado!

Resposta:

O verbo obedecer admite o pronome lhe:

«Ela queria ver se tu lhe obedecias» (José de Alencar, O Guarani, cit. por Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 526).

Já os verbos aspirar, quando significa «pretender», e assistir, na aceção de «presenciar», têm realmente um complemento introduzido pela preposição a que não pode ser substituído pelo pronome lhe. Não encontramos explicação histórica precisa para esta característica, mas ela pode ser explicada pela natureza semântica desses complementos: normalmente, referem-se a situações ou acontecimentos («aspirar ao êxito», «assistir ao jogo), e não a beneficiários de uma ação (cf. «dei uma flor a todas as pessoas» > «dei-lhes uma flor»; «a todas as pessoas» pode ser substituído por lhe, porque exprime o beneficiário ou o destinatário de uma ação).

Pergunta:

Gostaria que o Ciberdúvidas me elucidasse sobre a forma correta de escrever em português seis topónimos europeus referentes a cidades capitais, cujo tratamento nos media é divergente ou dos quais duvido se existe uma forma portuguesa em uso ou usável. São eles:

– Karlsruhe, capital judicial da Alemanha: Existe aportuguesamento?

– Цетиње (Cetinje), capital histórica e presidencial do Montenegro: Devemos escrever Tsetinie ou Tsetínie?

– ცხინვალი (Tskhinvali, em georgiano) ou Цхинвал (Tskhinval, em osseta e russo), capital da Ossétia do Sul: Como formar um aportuguesamento desta palavra? Tesrinval, Tesrinvali, Tserrinval, Tserrinvali?

– სოხუმი (Sokhumi, em georgiano), Сухум (Sukhum, em russo) ou Sukhumi (forma inglesa), capital da Abecásia: Devemos apenas verter para Sucúmi ou Sucum, ou devemos aportuguesar o kh para rr?

– Ստեփանակերտ (Stepanakert, em arménio) ou Xankəndi (Khankendi, em azerbaijanês), capital do Alto Carabaque: Será Estepanaquerte legítimo? E como aportuguesar Xankəndi?

– Tórshavn ou Thorshavn, capital das Ilhas Féroe: Como aportuguesar? Que sílaba tonificar?

Muito obrigado pelo sempre prestável esclarecimento do Ciberdúvidas.

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, começo por agradecer o apreço pela nossa opinião sobre este assunto. Gostaria, no entanto, de expressar o seguinte juízo sobre um dos eventuais pressupostos da pergunta – o de que existe, em abstrato, uma forma portuguesa correta para cada um destes topónimos.

Como vou explicar, a maior parte de tais topónimos não tem forma portuguesa correspondente fixada pela tradição, pelo que se torna muito difícil apresentar aqui como correto um nome português, sobretudo tendo em conta que as línguas de alguns dos topónimos apontados usam alfabetos não latinos que não têm ainda estabilizada a devida transliteração em língua portuguesa. Dito de outra maneira, há um problema prévio a resolver: perante certas línguas, a necessidade de dotar o português de critérios de transliteração que tenham reconhecimento, se não a nível oficial, pelo menos entre a generalidade das entidades que têm poder de decisão em matéria de norma linguística.

Posto isto, passo a comentar cada nome proposto, sobretudo com base nos vocabulários ortográficos que incluem a grafia de topónimos estrangeiros, a saber: o Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves, e o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (2009), coordenado por J. Malaca Casteleiro. 

– Karlsruhe

Sem aportuguesamento nas fontes consultadas.

- Цетиње/Cetinje

Não existe aportuguesamento disponível nas fontes acima indicadas, mas documenta-se Cetinhe. Note-se que em línguas próximas do português há formas vernáculas para este nome. Por exemplo, o espanhol dispõe de Cetiña, e o italiano, de Cettigne; a primeira destas formas poderia aportuguesar-se como "Cetinh...

Pergunta:

Relativamente ao Aiurveda, encontrei em locais diferentes a palavra classificada como substantivo masculino e substantivo feminino.

Como tal, o que será mais correto dizer: «a Ciência do Aiurveda», ou «a Ciência da Aiurveda», tendo em conta que Aiurveda se refere a uma tradição médica? Também pesquisei a palavra com grafia semelhante ao original (Ayurveda) e apareceu-me em diversos textos em português, até mesmo com o A inicial como Ā (Āyurveda). Qual será então o modo mais correto de escrever esta palavra?

Resposta:

Deve dizer «a ciência do aiurveda» ou, num título, «A Ciência do Aiurveda».

Este substantivo é um termo que se aplica ao «sistema de medicina tracional indiana cujos princípios teóricos remontam aos Vedas (2000 a. C.-500 a. C.), porém com uma prática ainda viva nos dias atuais» e está registado como substantivo comum sob a grafia aiurveda no Dicionário Houaiss e no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Sendo esta forma um aportuguesamento bem formado, tanto morfológica como ortograficamente, não há, em princípio, razão para preferir o sânscrito Āyurveda, que é a transcrição da forma em alfabeto devanágari (आयुर्वेद). Refira-se ainda que, em inglês, se escreve Ayurveda.

Pergunta:

Existe na língua portuguesa uma tradução para a palavra italiana buonismo? Desde já muito obrigado!

Resposta:

Não me parece que haja um equivalente exato em língua portuguesa. Este termo italiano é relativamente recente: não deverá ter muito mais de 20 anos, e há quem diga que foi cunhado pelos ativistas da Liga Norte, partido italiano fundado em 1991. Ora, este partido, que começou a aparecer de forma mais consistente na cena política do país a partir de 1994, tornou-se conhecido pela severidade com que encarava a criminalidade e as formas de punição da mesma. O termo buonismo (derivado do adjetivo buono, que quer dizer «bom») destinar-se-ia então a tachar a atitude contrária relativamente à criminalidade, ou seja, uma postura paternalista ou condescendente no que toca a este fenómeno.

Trata-se de um termo encontradiço nos meios políticos e jornalísticos, se bem que o seu uso não se limite a estes níveis da língua. De modo geral, refere-se a uma aplicação magnânima ou benevolente das leis, embora o seu uso se estenda também a outros campos, sempre nesta linha semântica. Seja como for, é normalmente pejorativo, ou mesmo escarnecedor. Seguem-se dois exemplos da sua aplicação recente.

Por ocasião do trágico naufrágio ao largo de Lampedusa, que vitimou trezentas pessoas, houve um jornal italiano (Il Giornale, publicado em Milão e conotado com a direita) que na sua manchete falava em «Trecento morti di buonismo», à guisa de crítica às autoridades que, de forma benevolente, teriam alegadamente deixado essas pessoas entrar sem controlo no país. Nos últimos dias, fala-se novamente de buonismo em Itália, a propósito da situação nas cadeias, que estão sobrelo...

Pergunta:

De acordo com a tradição popular, a aldeia de Gesteira, concelho de Soure, distrito de Coimbra, teve origem numa povoação, situada nas redondezas, denominada Migalhó. Qual a origem e o significado de Migalhó?

Resposta:

Não se encontra registo deste nome no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, pelo que, não havendo disponíveis outras obras com as mesmas características, pouco se pode dizer sobre a sua origem, a não ser conjeturas.

Mesmo assim, pode-se supor que Migalhó tenha origem no uso toponímico do substantivo comum migalha, o qual se documenta no Sul de Portugal (na península de Setúbal e no Alentejo; idem). Migalhó seria a evolução de uma forma arcaica de diminutivo – *micaleola (aceitando que migalha vem do latim vulgar hispânico micalĕa, derivado de mica,  «pedaço, partícula, migalha, grão», Dicionário Houaiss) ou de outra forma, também hipotética, já tendo por base migalha, *migalhola (forma não atestada). De ambas as formas, seria possível a passagem do sufixo -ola a -oa e depois a -ó conforme tendência característica dos dialetos portugueses. Nestes, por contraste com grande parte dos dialetos galegos, contrai-se geralmente a sequência final -oa em -ó: MOLA > moa (galego) > (português); Figueirola (medieval) > Figueiroa (na Galiza) > Figueiró (em Portugal). Pela mesma lógica, é legítimo conjeturar que Migalhó pressupõe Migalhoa, forma que de resto parece estar documentada na zona de Soure. Dito isto, fica por esclarecer por que razão se havia de atribuir um nome assim a uma localidade, o qual historic...