Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Por que razão a palavra ultrassom é derivada por prefixação, e neoliberal é um composto morfológico? Qual a distinção entre prefixo e radical (de acordo com o Dicionário Terminológico)?

Resposta:

Não é fácil distinguir prefixos de radicais, como já se explicou em resposta anterior (consultar também Sobre formação de palavras). Geralmente, um prefixo tem origem numa preposição habitualmente latina, como acontece com ultra- (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, p. 88). Neo- é uma forma não autónoma considerada por vários gramáticos como radical (cf. idem, p. 111), mas os acordos ortográficos têm-lhe dado um tratamento especial, à semelhança do que acontece com outros radicais, incluídos num grupo de elementos de origem adjetival, análogos aos prefixos (Base XXIX, n.º 2 do Acordo Ortográfico de 1945, e Base XVI do Acordo Ortográfico de 1990). Em suma, a diferença entre prefixo e radical não é propriamente intuitiva, pelo que convém consultar as gramáticas de referência (a aqui consultada ou a Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara) para apurar de que modo uma dada forma não autónoma tem sido classificada.

Pergunta:

Antes de mais, queria felicitá-los pelo excelente trabalho que têm vindo a desenvolver e pelo apoio que representam para aqueles que, como eu, usam a língua como ferramenta de trabalho.

A minha dúvida surgiu a propósito de uma pergunta que me colocou uma aluna espanhola. Segundo ela, em espanhol, o uso da voz passiva é característico da linguagem jurídica. Gostava de saber se em português podemos afirmar que a voz passiva se caracteriza por ser usada em registos específicos da língua e quais seriam esses âmbitos de utilização.

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas palavras estimulantes.

Em português, verifica-se a mesma preferência que se associa à voz passiva no espanhol:

«Na linguagem oficial usa-se a voz passiva ou voz reflexa com valor de passiva, porque as determinações legais dirigem-se a uma massa passiva orientada superiormente por um órgão activo, que se adivinha sempre presente: o Estado. Assim se justifica o carácter impessoal dessa linguagem, para a qual valem, mais que as pessoas, os actos praticados por elas. Para exemplo, veja-se o art.º 529.º do Código Administrativo Português: "Sempre que um funcionário administrativo deixe de comparecer ao serviço durante cinco dias, depois de expressamente ter manifestado a sua intenção de abandonar o cargo, será pelo seu imediato superior hierárquico levantado auto de abandono do lugar." Não se diz o seu superior levantará», porque punha em evidência a pessoa do funcionário, quando o que mais importa acentuar é o acto, a função» (M. Rodrigues Lapa, Estilística da Língua Portuguesa, Coimbra Editora, 179, p. 190).

Pergunta:

O vocábulo como pode ser considerado uma conjunção subordinativa comparativa, no caso de surgir numa oração subordinada comparativa. 

Porém, como se classifica quando não pertence a uma oração? Ex: «O senhor..., como primeiro outorgante...»

Resposta:

Mesmo que não introduza uma oração, a palavra como continua a ser classificada como uma conjunção subordinativa. Já mais difícil se torna definir o seu subtipo: é legítimo atribuir-lhe valor comparativo, embora a sua equivalência semântica com enquanto e «na qualidade de» no contexto apresentado na pergunta também possibilite encará-la como conjunção subordinativa conformativa (cf. Dicionário Houaiss, s. v. enquanto).

Pergunta:

Antes de mais, gostaria de mostrar o meu apreço pelo trabalho que fazem. É, sem dúvida, um excelente meio para esclarecer dúvidas e prestar um serviço valioso a quem procura saber mais e melhor.

Quanto à minha questão, estou em dúvida sobre a colocação da vírgula na frase seguinte:

«E foi pensando nessa viagem, que a decidiu fazer.»

Sei pontuá-la em frases semelhantes («pensando nessa viagem, decidiu fazê-la» ou «e, pensando nessa viagem, decidiu fazê-la»), mas na primeira que referi («e foi pensando nessa viagem, que a decidiu fazer») não tenho a certeza.

Assim, gostaria de saber qual a forma correcta de a pontuar e a regra que determina a colocação ou não colocação de vírgula na frase referida.

Resposta:

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas palavras iniciais.

A construção que apresenta (os gramáticos chamam-lhe «construção de clivagem») é uma forma de dar relevo ao foco da informação:

1) «Foi ele que decidiu fazer a viagem.»

2) «Foi por pensar numa viagem que ele a decidiu fazer/decidiu fazê-la.»

Nestes exemplos não se usa vírgula, nem mesmo no segundo, onde a construção «foi... que...» destaca uma oração de infinitivo («por pensar numa viagem»).

Seguindo os mesmo exemplos, não se usa vírgula na frase que nos apresenta:

«E foi pensando/a pensar nessa viagem que a decidiu fazer/decidiu fazê-la.»

Pergunta:

Eu nasci na Covilhã, mas fui para a Alemanha com quatro anos. Este verão, depois de 34 anos, decidi voltar para Portugal. Como cresci no estrangeiro, só aprendi o português com os meus pais, obviamente neste caso com o dialeto da Beira Baixa. Eu tenho tido dificuldades a adaptar-me ao dialecto lisboeta, e tenho amigos que gostam de se rir com a minha pronúncia de certas palavras. Uma diferença que eu não percebo é a pronúncia da palavra nasci ou cresci. Eu digo "nassi" ou "cressi", os lisboetas dizem "naschi" ou "creschi". Isso para mim não é lógico, porque só palavras com ch ou x deviam ser pronunciadas assim, correcto?

Gostava de lhes dizer que gosto muito da vossa página porque tem muitas informações interessantes.

Muito obrigada.

Resposta:

No falar lisboeta, que em Portugal se toma frequentemente como padrão de pronúncia, tende-se a pronunciar "nacher"/"nache" e "crecher"/"creche". Estes verbos em -scer deveriam soar "-chcer", ou seja, "nachcer" e "crechcer", correspondendo à letra s o primeiro segmento que se ouve atualmente na palavra chão, e à letra c, o mesmo som sibilante que começa a palavra . Acontece que, embora muita gente se esforce por pronunciá-la, tal sequência é de difícil articulação, e daí a simplificação num único som – como se disse, o ch de chão: "nacher", "crecher".

Noutros dialetos de Portugal, como é o caso do da consulente, e nos falares do Brasil, o som que se associa à letra s de nascer e crescer não ficou chiado, isto é, não passou ao que se ouve no início de chão, antes se mantendo como som sibilante– o "s" de . Além disso, registou-se uma simplificação da sequência -sc-, que se resolveu não pelo som representado por ch, mas, sim, por uma única sibilante (mais uma vez, a do s de ou do c de cedo) – daí, "nacer"/"nace" e "crecer"/"crece".

Enfim, apesar da pronúncia, todos os falantes de português devem escrever nascer. Mas, quanto à variação fónica, não julguem os que falam "à moda de Lisboa" que têm melhor pronúncia que os que dela divergem. Na verdade, até seria bom que todos na área de Lisboa – ou em qualquer lugar onde se fale português – tivessem maior respeito pelas maneiras tradicionais de pronunciar as palavras que são características de outras regiões, porque, pelo menos histórica e culturalmente, elas se revelam tão legítimas com...