Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É correto «transpor uma porta» no sentido de «passar por ela»?

Obrigado.

Resposta:

É perfeitamente correto e coerente o uso de «transpor a porta», porque o substantivo porta não se aplica apenas à peça que fecha uma abertura – também se refere à própria abertura que é fechada dessa maneira (cf. s. v. porta, Dicionário Houaiss: «abertura ger. retangular, com o lado vertical mais comprido e a base ao nível do chão ou de um pavimento, que serve de entrada para um recinto»). Quando se fala em «transpor uma porta» (ou «transpor um portão»), trata-se, portanto, de atravessar um determinado espaço, e não propriamente a ação de atravessar um corpo sólido.

O uso em questão é frequente e ocorre, por exemplo, em Machado de Assis e em muitos outros escritores do século XIX:

«Hesitei entre ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu» (Machado de Assis, Memorial de Aires, in Corpus do Português, de Mark Davies e Michael Ferreira).

Pergunta:

Poderiam me informar de onde veio o sentido de «não ser bem-sucedido» incorporado ao verbo dançar. Ex.: «Não estudou suficiente para o concurso. Não podia dar outra: dançou»; «Esteja atento ao horário de chegada, senão você dança.»

Obrigado.

Resposta:

Não é possível dar conta das circunstâncias históricas na origem deste uso idiomático de dançar, que parece exclusivo do Brasil, mas é legítimo que tenha origem metafórica.

Dicionário Houaiss define dançar em várias aceções negativas (disfóricas), todas elas assinaladas como típicas do Brasil e relacionadas com situações informais de comunicação ou com meios socialmente marginais (definições e exemplos da fonte consultada):

– «sair-se mal (em algum evento ou empreendimento)»; ex.: «dançou na compra do carro usado»;

– «ser detido, preso ou autuado» (linguagem de delinqüentes); ex.: «foi apanhado furtando e dançou»;

– «ser morto» (linguagem de delinqüentes);

– «perder a oportunidade de fazer algo desejado; deixar de receber algum benefício»; ex.: «perdeu o convite para a festa, dançou»; «se não pegar o banco aberto, você vai dançar»;

– «fazer esforço para conseguir algo; empenhar-se demasiadamente; suar»; ex.: «dançou para passar de ano»;

– «ser posto de lado; ser alijado, ser despedido»; ex.: «começou a faltar demais, dançou»;

– «não acontecer, ger. por motivos imperiosos»; ex.: «nossa ida à praia dançou»;

– «não dar certo; gorar, acabar»; ex.: «aquele namoro já dançou há muito tempo».

Em Portugal, este emprego de dançar pode ser compreendido, mas não se verifica.

É legítimo supor que todos estes usos têm origem metafórica, como extensão semântica de dançar com os significados de «ir de um lado para o outro desordenadam...

Pergunta:

Em português de Portugal, a palavra velário também pode ter o significado de «local onde se depositam velas nas igrejas»? Que outra palavra se pode utilizar para designar esse local?

Grato desde já pela atenção.

Resposta:

Em relação ao português de Portugal, regista-se velário apenas como «toldo com que os antigos Romanos cobriam os circos e os teatros ao ar livre, por causa da chuva» (fontes consultadas: dicionários de língua portuguesa em linha, da Infopédia e da Priberam, e Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado). No entanto, na Internet, em páginas comerciais respeitantes ao Brasil, documenta-se o uso de velário como «conjunto de velas; lugar onde se colocam velas». Trata-se, portanto, de uma palavra derivada de vela, «peça geralmente de cera que tem um pavio e serve para alumiar» (cf. Dicionário Houaiss), cujo uso parece limitar-se por enquanto ao português do Brasil e restringir-se a contextos de atividade muito restritos (aqueles em que tal objeto é necessário, por exemplo, no funcionamento de uma igreja).

Pergunta:

Confesso que, até ouvir esse reparo de alguém, eu também usava a expressão «dois pesos e duas medidas».

Segundo esse reparo, trata-se de uma corruptela retórica, pois o correto será «um peso e duas medidas».

Trata-se-ia do mesmo tipo de deturpação que aconteceu com a expressão «fala mal e parcamente» (generalizadamente confundida com «fala mal e porcamente», como se recordava recentemente aqui no Ciberdúvidas).

É mesmo assim?

Resposta:

A expressão tradicional é mesmo «dois pesos e duas medidas», conforme se pode depreender do texto bíblico, mais precisamente do Deutoronómio 25: 13-16. Apresenta-se a versão latina da Vulgata, a tradução em português e a Bíblia do Rei Jaime I, em inglês. Nos três casos referem-se sempre dois pesos e duas medidas: «pondera maius et minor», «modius maior et minor»; «pesos, maior e menor» e «um alqueire maior, e outro mais pequeno»; «divers weights, a great and a small» e «divers measures, a great and a small».

Biblia Sacra Vulgata

«13 non habebis in sacculo diversa pondera maius et minus

14 nec erit in domo tua modius maior et minor

15 pondus habebis iustum et verum et modius aequalis et verus erit tibi ut multo vivas tempore super terram quam Dominus Deus tuus dederit tibi 16 abominatur enim Dominus eum qui facit haec et aversatur omnem iniustitiam»

Bíblia Sagrada contendo o Velho e o Novo Testamento – Traduzida em Portuguez segundo a Vulgata Latina por António Pereira de Figueiredo, Lallement Frères, Typ. Lisboa, 1879:

«13 Não terás no teu sacco diversos pesos, maior e menor:

14 Nem haberá em tua casa um alqueire maior, e outro mais pequeno:

15 terás um peso justo, e verdadeiro, e o teu alqueire será egual, e sempre o mesmo: para ssim viveres muito tempo na terra, que o Senhor teu Deus te der:

16 Porque o Senhor teu Deus abomina o que faz estas cousas e aborrece toda a injustiça.»

Pergunta:

Na frase «embora ele tenha detalhado cada ponto de Lisboa», a expressão «cada ponto de Lisboa» poderia ser substituída pelo pronome oblíquo os de modo que a frase ficasse «embora ele os tenha detalhado»? Ou nesse caso a regra da concordância com o pronome indefinido cada é imperativa?

Agradeço desde já a atenção!

Resposta:

A retoma (anafórica) de uma expressão que inclua o quantificador cada por parte de um pronome átono é feita sobretudo no plural:

1. «Embora ele tenha detalhado cada ponto de Lisboa e os tenha verificado rigorosamente.»

2. ?«Embora ele tenha detalhado cada ponto de Lisboa e o tenha verificado rigorosamente.»

Não sendo impossível, a frase 2 afigura-se menos natural que 1, porque o valor de cada, embora sintaticamente singular na oração em que ocorre, é sempre associado semanticamente a todos, numa perspetiva distributiva («todos, um a um»).1

Assinale-se o que se diz no Dicionário Houaiss acerca do valor semântico de cada (desenvolveram-se todas as abreviaturas):

«[A]lguns gramáticos recomendam o uso de cada apenas com sentido distributivo, reservando o pronome todo para os casos em que não há idéia de distribuição, mas apenas de generalidade ou totalidade; assim, sigo cada vez por um caminho implica um caminho diferente a cada vez, enquanto sigo toda vez por um caminho significa seguir sempre o mesmo caminho (há também casos intermediários, em que a diferença é mais de ênfase que de significado: p. ex.: cada homem tem um preço e todo homem tem um preço); no uso corrente, contudo, cada e todo têm sentidos muito próximos, sendo mesmo us[ados] como sinônimos [.]  [..] [Q]uando cada forma o sujeito (simples ou composto) de uma oração, o verbo concorda na 3.ª pessoa do singular (cada livro daqueles...