Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«A Web Summit Lisboa é a nossa melhor oportunidade depois da Expo-98», era o título da entrevista publicada na Revista do Expresso do passado dia 9/01 ao secretário de Estado da Indústria e (assim identificado) ex-diretor executivo da Startup Lisboa, João Vasconcelos. E, mais adiante: «(...) O poder montar um negócio em Portugal e na semana seguinte ter um cliente no Japão era uma coisa que dantes não era possível. É importante sublinhar que nem todas as startups se tornarão empresas: muitas delas estão a desenvolver um produto, uma feature, e esse produto ou feature será comprado por alguma empresa para os incorporar na sua oferta. (...)» Web Summit, startup, feature. Pergunto: nenhuma destas palavras tem tradução portuguesa, ou trata-se só de mais um (mau) exemplo de um governante português preferir o inglês ao idioma nacional?

Resposta:

1. Web Summit1

Web Summit é o nome de um encontro internacional organizado anualmente por empresas irlandesas (em 2015, Connected Intelligence Limited). Trata-se de um nome próprio resultante da conversão da expressão «web summit», que literalmente é o mesmo que «cimeira da/na rede», «cimeira da/na Web» ou «cimeira da/na Internet»; pode ainda sugerir-se «cimeira web», com web empregado adjetivalmente e em itálico (ou aspas). Como Web Summit se comporta como nome próprio, não tem, em princípio, tradução. Mesmo assim, esse estatuto não o dispensa de se ligar a outro nome próprio, seguindo a sintaxe portuguesa: «a Web Summit de Lisboa» (apesar de, em certos eventos, se observar a omissão da preposição, como sucede com o Moda Lisboa).

2. Start-up

Uma tradução recorrente é «empresa emergente» (existe solução homóloga em espanhol), no sentido de empresa que procura inovar no mercado, apoiando-se na tecnologia.2

3. Feature

É palavra traduzível de diferentes formas, mas, no contexto das empresas emergentes, encontra equivalente em recurso (ver Proz.com) e funcionalidade (Linguee). Este último termo português é polissémico (vários significados) e, revertendo ao inglês, pode encontrar outras traduções (por exemplo, functionality; cf....

Pergunta:

Morfologicamente, trio é um substantivo coletivo? Ou um numeral coletivo?

Resposta:

Pode considerar-se – e muitas gramáticas assim o fazem – que trio é um numeral coletivo.

Dicionário Terminológico não inclui os numerais coletivos entre os quantificadores numerais. Há gramáticas que não chegam a classificar palavras como trio ou dezena como coletivos; mas, por exemplo, no caso da Moderna Gramática Portuguesa (Editora Lucerna, 2003, pág. 204), de Evanildo Bechara, é dito que se trata de numerais que têm analogia com os coletivos, com a diferença de definirem a quantidade.

No entanto, há várias gramáticas que incluem par e dezena numa série que forma a classe dos numerais coletivos (ver P. Teyssier, Manual de Língua Portuguesa, Coimbra Editora, 1989, pág. 185). Mais recentemente, a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 926/927) apresenta par, trio, quadra, quinteto, dezena, etc. como uma série que constitui os numerais coletivos.

Em suma, trio é geralmente tratado como coletivo e afigura-se legítimo classificá-lo entre os numerais coletivos, o que não impede que outras gramáticas lhe atribuam outra classificação.

Pergunta:

Estou com dúvidas na construção desta frase: «O inacreditável esplendor e beleza daquela vista deixavam-nos de coração cheio.»

Atendendo à concordância em número, não sei se deveria escrever: «Os inacreditáveis esplendor e beleza daquela vista deixavam-nos de coração cheio.» Julgo que não, mas a questão é que o adjectivo «acreditável» refere-se tanto a «esplendor» como a «beleza». Por outro lado, creio ter ouvido um linguista explicar há tempos que, quando o objecto não é quantificável (quando não tem limites concretos), está correcto manter tanto o adjectivo como o verbo no singular, ainda que a frase refira mais do que um desses objectos. Qual a resposta correcta? E qual a explicação?

Muito obrigado.

Resposta:

A sequência «o inacreditável esplendor e beleza» está correta.

Para esta resposta, não foi possível identificar o preceito que o consulente atribui a certo linguista, mas, tendo em conta Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, Editora Lucerna, 2003, pág. 545/546), é possível dizer/escrever «o inacreditável esplendor e beleza daquela vista...», tal como se diz «toda a sua luta e sacrifícios» ou «com boa coragem e zelo. É de realçar que neste últimos exemplos se coordenam substantivos de géneros diferentes, ao primeiro dos quais se associam determinantes e adjetivos que abrangem semanticamente o segundo termo coordenado. Note-se, contudo, que Bechara aceita também casos semelhantes a «os inacreditáveis esplendor e beleza daquela vista...», porque regista sem comentar desfavoravelmente a seguinte sequência: «bons coragem e zelo».

Pergunta:

Qual é a forma correcta?

«Não era o que ela conjecturava, a ideia que fazia das suas quedas, dos seus vícios, da sua vida que o irritava, mas a permissividade que se autorizava de o querer admoestar.»

ou

«Não era o que ela conjecturava, a ideia que fazia das suas quedas, dos seus vícios, da sua vida que o irritava, mas a permissividade que se autorizava em o querer admoestar.»

Com os meus agradecimentos.

Resposta:

Revela-se estranha a ocorrência do substantivo permissividade com uma oração completiva introduzida por preposição, porque esta palavra, ao contrário de permissão, não tem correspondência direta com o verbo permitir:

1 – Saiu do quartel, com permissão de/para voltar depois da meia-noite.

2 – Saiu do quartel, com permissividade de/para [?] voltar depois da meia-noite.

Comparando 1 com 2, verifica-se que só 1 está em estreita correspondência com permitir: «Saiu do quartel, tendo-lhe sido permitido voltar depois da meia-noite.» Em 2, aparece permissividade, palavra derivada de permissivo, adjetivo que, embora evidencie óbvia afinidade morfológica e semântica com permitir e permissão, se aproxima também do significado e da sintaxe do adjetivo tolerante, mas juntando a este uma apreciação negativa (cf. uma das aceções de permissivo no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: «que admite facilmente, que tolera certos comportamentos, certas práticas que outros reprovariam ou não permitiriam»). Neste contexto, convém assinalar que, ocorrendo permissivo com complementos, são geralmente a preposição com ou a sequência de preposições para com que os introduzem («permissivo com/para com os abusadores») e serão estas também as palavras a que se associará permissividade se houver que usar preposições («permissividade com/para com os abusadores»).

Tendo, porta...

Pergunta:

Antes de mais,agradeço o contributo que têm dado, ao longo de vários anos, para melhor se compreender, falar e escrever a língua portuguesa.

Na análise da frase, abaixo transcrita, surgiram-me algumas dúvidas.

«A era do petróleo criou prosperidade a uma escala que as gerações anteriores não poderiam sequer imaginar.»

A oração iniciada por que será subordinada adjetiva relativa restritiva, ou subordinada adverbial consecutiva (dado que estará implícito, na subordinante, que «criou prosperidade a uma escala [tal] que...»)?

Agradeço a paciência e disponibilidade!

Resposta:

Pode considerar-se que a oração é ambígua, porque interpretável como relativa ou como consecutiva (como bem observa o consulente).

A leitura consecutiva decorre de aceitar-se que está subentendida uma expressão de intensidade – por exemplo, o determinante tal, que marca intensidade:

1 – «A era do petróleo criou prosperidade a uma escala que as gerações anteriores não poderiam sequer imaginar.» = «A era do petróleo criou prosperidade a uma escala [tal,] que as gerações anteriores não poderiam sequer imaginar.»

Esta ambiguidade é comentada pela Gramática da Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Caminho, 2003, pág. 758/759), de Maria Helena Mira Mateus e outras autoras, ao realçar a afinidade entre orações consecutivas e orações relativas:

«A existência de frases ambíguas [...] entre a natureza relativa e a de consecutiva aproxima de novo os dois tipos de construção:

[...] Tenho uma casa que abriga muita gente.

[...] Tenho uma casa tal que abriga muita gente. [...]»

É de assinalar, porém, que a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 2169) classifica como orações consecutivas aquelas que, introduzidas por que, ocorrem numa frase exclamativa:

«O operador consecutivo pode não ser expresso, em frases exclamativas como as seguintes:

[...] Estava um frio que não se podia sair de casa! [...]

Ele trabalha que se mata! [...]»

Voltando à frase em questão, embora esta não seja exclamativa, a intensificação associada a «uma escala» permite enquadrar a oração «que as g...