Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Os dicionários gerais da língua portuguesa (Houaiss e Aurélio, por exemplo) dão como obscura a origem do verbo enxergar. Há algum indício (ainda que de etimologia popular) para formação deste verbo?

Resposta:

Sobre a etimologia de enxergar, parece que, por enquanto, pouco mais se pode adiantar ao que é dito no Dicionário Houaiss, ou seja, que há quem pretenda que enxergar deriva ou é a conversão de enxerga, «colchão», do latim serica, sericorum, «estofo, tecido ou veste de seda». Contudo, reconheça-se que é difícil explicar como pode o significado de tal palavra prestar-se a desenvolver os valores referentes à perceção que hoje se associam a enxergar.* Cite-se o comentário de José Pedro Machado no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (mantém-se a ortografia do original, anterior à de 1990):

«Não está bem demonstrada a relacionação enxerga > enxergar, admitida por alguns, entre os quais [Antenor] Nasc[entes] [Dicionário Etimológico]-1, s. v.; em 1943, Leo Spitzer também a aceitou (Hispanic Review, pp. 216-218), apenas pondo dificuldades à solução semântica do dicionarista brasileiro ("O sentido faz dificuldade; tratar-se-ia de alguma fazenda transparente de seda, através da qual se enxergasse? O esp[anhol] tem enjergar, que significa "principiar e dirigir um negócio"). Spitzer daria razão ao étimo apontado por Nascentes, mas a evolução semântica deve ter sido outra; depois de se referir à acepção galega "endilgar; dirigir un asunto malamente, ensartar un discurso o escrito sin orden ni concierta; divisar, ver de lejos") e de aludir a passos de Os Lusíadas (IX, 68 e 62). O verbo apareceu (emerged) sem dúvida em áreas rurais; cita as acepções registadas por Cândido de Figueiredo. O pref. en- de enxerga é um problema; lat. serica > esp. serga (cf. francês serge, sarge), forma só preservada no título de Montalvo "Las sergas de Esplandián". O espanhol enjerga = regressivo de *enjergar, "...

Pergunta:

A respeito da consulta sobre o fenómeno da chamada troca do /v/ pelo /b/, gostaria de contribuir outro ponto de vista.

A consideração deste fenómeno fonético como "dialectal" vem do facto de isto acontecer actualmente apenas na região norte de Portugal e nos dialectos galegos; no entanto, na maior parte do país e, portanto, no português padrão actual, não acontece. Isto leva à consideração de que são os nortenhos os que «falam esquisito» e se afastam da norma. Mas isto é o mesmo que dizer que a situação "original" do português foi a diferenciação dos fonemas /v/ e /b/. Não obstante, a língua portuguesa tem a sua origem exactamente no território onde actualmente esta diferenciação não existe (Galiza e Norte de Portugal) e talvez nunca existisse. A troca destes sons tem origem no latim vulgar, no qual se produz uma confusão dos fonemas [β], que é um alófono fricativo bilabial de [b] quando intervocálica, e [w], fonema semiconsoante que era escrito <v> ou <u> e pronunciado como o <w> do inglês. Este fenómeno é conhecido como betacismo. A ideia mais estendida é que, perante esta confusão, as línguas românicas tiveram soluções diferentes, uma das quais é a criação duma fricativa labiodental, /v/. Nas línguas galo-românicas ou itálicas parece que foi assim, e às vezes alguns consideram que também aconteceu isto no "português meridional", mas não nos dialectos do Norte.

Acho totalmente errado dizer que isto é influência do espanhol. Mas o caso do português tem de ser necessariamente diferente do do galo-românico, porque esse "português meridional" não é mais do que a evolução duma língua que já se tinha formado no Norte e que ainda hoje não tem o fonema labiodental /v/ (dialectos galegos e dialectos portugueses setentrionais). Portanto, a aparição do fonema /v/ em português parece mais u...

Resposta:

Muito se agradecem observações do consulente, as quais suscitam um breve comentário.

É possível que o [v] seja, foneticamente, uma inovação do português centro-meridional, mas, do ponto de vista fonológico, tem-se considerado que este [v] seria variante da fricativa bilabial [β] (também notada [b], como se verá mais adiante], que parece ainda ocorrer hoje como variante [alofone] de /b/ mesmo em certos falares meridionais (em posição intervocálica, por exemplo, no falar lisboeta, quando se pronuncia acabar). O segmento [v], labiodental, teria prevalecido sobre [β], ao mesmo tempo que permitia manter um contraste fonológico talvez mais antigo mais bem ténue, pois opunha, no sistema dialetal galego-português, duas unidades com o mesmo ponto de articulação, uma oclusiva bilabial e uma fricativa (ou constritiva) bilabial. A neutralização destas duas unidades, que convergiram num único fonema, seria uma inovação dos sistemas dialetais românicos da metade norte da Península Ibérica. Os dialetos portugueses setentrionais seguiram, portanto, o galego, o leonês ou o castelhano, ao neutralizar esse contraste fonológico. Os falares centro-meridionais mantiveram o contraste, mas vincando-o mais, ao substituir o ponto de articulação da fricativa (ou constritiva), que teria deixado de ser bilabial para passar a labiodental.

Próximo desta perspetiva parece ser o ponto de vista da linguista brasileira Rosa Virgínia Mattos e Silva (O Português Arcaico. Uma Aproximação, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, pág. 549; manteve-se a ortografia do original):

«[...] [N]a fase galego-portuguesa, ou seja, na primeira fase do português arcaico, no Noroeste peninsular, haveria uma oposição entre bilabial oclusi...

Pergunta:

Qual está correcto e porquê?

– «Um milhão e uma pessoa.»

– «Um milhão e uma pessoas.»

Obrigado.

Resposta:

A forma correta é «um milhão e uma pessoas», com «pessoas» no plural, tal como acontece quando se diz «um milhão de pessoas» ou como sucede com mil, quando se diz «mil e uma pessoas». O facto de milhão requerer a preposição de se não for imediatamente seguido de outro numeral («um milhão de pessoas») não implica que, em referência ao número imediatamente superior a «um milhão» – «um milhão e um» –, fique subentendida a expressão «de pessoas» e que o numeral um fique associado a um singular. Por outras palavras, o numeral não subentende «um milhão [de pessoas] e uma pessoa».

Sobre o uso de milhão, cite-se a Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, pág. 933; o * indica agramaticalidade):

«[...] Os numerais da classe dos milhões são formados com base no cardinal especial milhão, que é lexicalmente um substantivo. Os diferentes numerais são obtidos através de quantificação por meio de numerais cardinais comuns (p. e., um milhão, três milhões). Milhão, bilião, trilião, etc. são numerais especiais. São, como se disse, cardinais especiais. Por esse facto, os numerais cardinais que denotam unidades destas classes e que não sejam seguidos de outros numerais ligam-se ao grupo nominal que forma o domínio da quantificação através da preposição de: assim, tem-se um milhão de manifestantes (vs. *um milhão manifestantes) a par, p. e., de uma dúzia de manifestantes (vs. *uma dúzia manifestantes); no en...

Pergunta:

A palavra inúmero é formada por derivação prefixal? Se sim, o i tem que valor semântico? Pode-se ou deve-se interpretar o i como parte do radical, sendo a palavra sincronicamente primitiva? No latim, o in, em innumerus, era considerado prefixo, ou só se parecia com um, sendo na verdade parte do radical?

Obrigado.

Resposta:

O caso apresentado não tem uma resposta inequívoca.

O adjetivo inúmero é suscetível de uma análise diacrónica, que permite classificá-lo como cultismo, ou seja, adaptação do latim innumerus, por via erudita. Em latim, in é um prefixo de valor negativo, o que permite interpretar innumerus como sinónimo de innumerabilis, equivalente ao português inumerável, ou seja, «abundante» (deixando subentendido que algo é tão abundante, que não se pode contar).

Por outro lado, podendo i- ser encarado, em português, como variante contextual do prefixo in- – cf. ilegal, imoral, inegável, inegociável –, a palavra é analisável como derivada, mas com a particularidade de, ao contrário do que acontece com a maioria dos derivados por prefixação*, o prefixo ocorrer associado a uma mudança de classe gramatical da sua base de derivação, que é o substantivo número. Uma alternativa a esta análise seria considerar que, na atual sincronia, inúmero é uma palavra complexa não derivada, conforme define a Gramática Derivacional do Português (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, pág. 64), de M.ª Graça Rio-Torto et al. Adotando esta perspetiva, poderia propor-se que a base de derivação de inúmero – número – é uma forma adjetival que não tem autonomia enquanto adjetivo no português contemporâneo.

* Refira-se que é possível a adjunção de in- a substantivos: inverdade, injustiça. No entanto, estes derivados prefixais são substantivos como as bases de derivação respetivas – verdade, justiça.

Pergunta:

Primeiramente, gostaria de parabenizá-los por essa excelente ferramenta de auxílio em prol da cultura. Embora a expressão «vem bem a calhar» não seja tão popular aqui no Brasil, gostaria de saber sua etimologia.

Resposta:

Agradecendo as palavras iniciais do consulente, observe-se que falar da etimologia de uma frase feita ou de uma expressão idiomática é geralmente uma tarefa que raramente chega a identificar os seus criadores e as suas circunstâncias, até porque tais formas surgem e difundem-se anonimamente, em processos sociais de transmissão linguística. É o caso de «vem bem a calhar», que, além de ter numerosas variantes, decorre mais das virtualidades de uso que a semântica do verbo calhar encerra do que da criatividade arbitrária de um falante concreto.

Diga-se, então, que este verbo significa literalmente «entrar na calha», entendendo-se por calha o mesmo que sulco, cano, rego ou vala. Ao interpretar a expressão em apreço, deverá ter-se em conta que tudo o que "calha" é encaminhado por uma calha, que traça um rumo, uma direção. Esta imagem presta-se a ser também uma metáfora da oportunidade com que algo acontece ou alguém aparece, muitas vezes trazendo ("encaminhando") algum benefício. Daí os usos de calhar nas aceções de «caber em sorte» e «convir», que são extensões semânticas do referido significado literal. Assim se explicam igualmente expressões como «vem bem a calhar», «vem a calhar bem» ou «vem mesmo a calhar», as quais são todas de uso corrente em Portugal*. Refira-se ainda a etimologia de calha, palavra que terá origem numa forma latina não atestada, canālia, um neutro plural de canālis, «cano, tubo, aqueduto, rego de água, fosso; canal, leito, corrente de um rio» (ver Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, e Dicionário Houais...