Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Haja a jogarmos conversa fora!»

Esta frase é correta, ou seria «haja jogarmos conversa fora!»?

Grata.

Resposta:

Do ponto de vista da norma-padrão, a sequência em causa não tem tradição, fugindo ao que é o uso correto com haja em frases exclamativas, nas quais esta forma verbal é sempre seguida de uma expressão nominal: «haja saúde!»; «haja paciência!». Parece, pois, que a resposta à pergunta é relativamente simples: é incorreto o emprego da forma verbal haja associada a um infinitivo, tendo ou não uma preposição de permeio.

Contudo, verifica-se que, na Internet, em páginas brasileiras*, ocorre haja acompanhado de oração de infinitivo, precedida ou não da preposição a: «haja (a) jogarmos conversa fora!» Esta construção afigura-se estranha – pelo menos, na perspetiva do português de Portugal –, e, acerca dela, certamente os gramáticos e muitos falantes só terão a dizer que é inaceitável, considerando descabida a discussão quanto a saber se o uso preposicionado é melhor que o não preposicionado. Não obstante, na perspetiva descritiva, vale a pena registar tal sequência, que pertencerá ao registo popular brasileiro; mas, querendo dar-lhe atenção e estatuto normativos, diga-se que, se «haja» não exibe preposição antes da expressão nominal que é seu complemento direto («haja saúde!»), então, em princípio, também não se imporá a preposição à estrutura com infinitivo, que tem função completiva. Sendo assim, a sequência «haja jogarmos conversa fora» será melhor que «haja "a" jogarmos conversa fora».** Refira-se ainda que a expressão «jogar conversa fora» é brasileirismo idiomático, de tom informal, conforme se regista no Dicionário Houaiss: «Conversar sobre assuntos corriqueiros, sem grande importância.»

* Registem-se três exemplos provenientes de páginas da Internet, nas quais é notório o to...

Pergunta:

Sendo minhoto, sempre usei a palavra loca para referir-me a qualquer buraco ou depressão, o que segundo alguns dicionários parece estar correcto. Questiono-me sobre a possível origem germânica, dado Loch ser usado em alemão para designar um buraco ou depressão.

Obrigado.

Resposta:

As fontes consultadas não confirmam a origem germânica de loca.

José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, considera que o vocábulo tem origem obscura, embora refira (sem a perfilhar) a hipótese de a palavra poder ter origem no tupi roca, cujo r inicial seria não múltiplo, mas, sim, brando (mais próximo do r de caro), o que permitiria explicar a passagem desse r inicial a l. O Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, de Artur Bivar, e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa registam loca como o mesmo que «pequeno esconderijo para peixes, «pequena gruta» e «cavidade», considerando o segundo dicionário que a palavra tem origem obscura.  O Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira , de 2001), também a regista em aceções semelhantes, mas atribui-lhe origem latina: «lat. loca, orum neutro plural do latim locus, i "lugar, sítio, localidade, ponto tópico"». Esta fonte parece seguir o que já antes sugerira interrogativamente Cândido de Figueiredo no seu dicionário (edição de 1913, disponível em versão em linha), proposta registada por Antenor Nascentes, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa («Figueiredo cita em dúvida o latim locus, lugar»).

Se loca tem origem latina, diga-se que não parece haver relação do latim locus com o alemão Loch («buraco»), atendendo às respetivas etimologias: o radical de locus (loc-) vem do radical indo-europeu *st(h)el («pôr, colocar»), enquanto Loch se terá desenvolvido da raiz também indo-europeia *leug-, *lŭg-, «dobrar, torcer» (cf., em inglês, Online...

Pergunta:

Qual o sentido original do termo "baveca"?

Resposta:

A palavra babeca – e não "baveca", no português contemporâneo – encontra-se registada em alguns dicionários como o mesmo que «homem néscio, basbaque» , conforme registo do Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Lisboa, Círculo de Leitores, 1991), de José Pedro Machado, que retoma a definição de Cândido de Figueiredo no Novo Dicionário da Língua Portuguesa (foi consultada a versão eletrónica da 2.ª edição de 1913). Machado também acolhe babeca, no sentido de «cavalo muito grande», e babeco, como sinónimo de caipira1. Observe-se que o substantivo comum babeca é geralmente associado etimologicamente a baba, como alusão à tendência que apresentam certos doentes mentais para salivar abundantemente.

Da Idade Média, tem-se memória da forma onomástica Baveca como nome de um jogral galego (ou português) – Joam Baveca , ativo em meados do século XIII –, a qual parece ter origem no substantivo comum baveca, do galego ou do português medievais. O vocábulo babeca será, portanto, a forma atual da referida palavra galego-portuguesa, que terá origem, segundo José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2003) no «provençal bavaec, baveca,"'bobo", "charlatão" < latim *babaeca, diminutivo babaecula [...]; cf. latim babaeculus ou babecalus, "tolo", "indiscreto", "asno", "pateta", "idiota", "tapado", "estúpido", "néscio"»2. Quer as formas provençais quer a latinas parecem relacionar-se também com a noção marcada por baba.

1 O Dicionário Houaiss define babeco como regionalismo do estad...

Pergunta:

Existe em português a expressão «desculpe a moléstia» com sentido «desculpe o incómodo»?

Obrigada pelo esclarecimento.

Resposta:

No português de Portugal, não se usa a expressão «desculpe(m) a moléstia» no sentido de «desculpe(m) o incómodo». No português do Brasil, também não parece haver tal uso. É possível que se trate de uma tradução apressada do castelhano «disculpe(n) la(s) molestia(s)», que significa «desculpe o(s) incómodo(s)/transtorno(s)/inconveniente(s)» (ver traduções do portal Linguee). Não se exclui que certos textos galegos possam dar azo a pensar que a expressão ocorre no discurso de falantes de língua portuguesa, porque à palavra galega molestia, eventualmente com acento, pode associar-se o artigo definido a, que é igual ao português: «Desculpen a molestia, dixo o arnal con ollos somnolentos» (Manuel Rivas, En Salvaxe Compaña, Vigo, Edicións Xerais, 1993, no Tesouro Informatizado da Língua Galega).

Pergunta:

Deve dizer-se, e escrever-se já agora, em português, "militaria", ou "militária?" E grafar deve ser em itálico? Em que circunstâncias?

Resposta:

A palavra, de uso relativamente recente em português, parece adaptação do anglicismo militaria, termo formado em inglês com elementos de raiz latina, que significa «artigos militares com interesse histórico, como armas, uniformes e acessórios» («Military articles of historical interest, such as weapons, uniforms, and equipment», Oxford English Dictionary)1.

Sendo assim, há várias opções quanto a este vocábulo:

1. Como empréstimo do inglês que é, assinala-se essa particularidade mediante o uso do itálico: militaria.

2. É possível também adaptá-lo fonética e ortograficamente ao português – "militária" –, forma não atestada nas fontes dicionarísticas consultadas para a elaboração desta pergunta. Verifica-se, porém, que em muitas páginas da Internet ocorre a grafia "militária"2.

3. Uma terceira opção será usar a expressão «antiguidades militares», que se revela adequada atendendo ao inglês militaria (ver acima).

1 Note-se que em alemão se regista Militaria, nas aceções correspondentes a «livros militares, livros sobre guerra» e «objetos militares» (dicionário alemão-português da Porto Editora; ver também Duden, em alemão). Para esta resposta, não foi possível explorar a relação do termo inglês com o alemão e a eventual repercussão deste na forma portuguesa em causa. Contudo, um exemplo dos corpora da Linguateca sugere estreita afinidade semântica com a palavra alemã: «As unidades normalmente es...