Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Deve dizer-se, e escrever-se já agora, em português, "militaria", ou "militária?" E grafar deve ser em itálico? Em que circunstâncias?

Resposta:

A palavra, de uso relativamente recente em português, parece adaptação do anglicismo militaria, termo formado em inglês com elementos de raiz latina, que significa «artigos militares com interesse histórico, como armas, uniformes e acessórios» («Military articles of historical interest, such as weapons, uniforms, and equipment», Oxford English Dictionary)1.

Sendo assim, há várias opções quanto a este vocábulo:

1. Como empréstimo do inglês que é, assinala-se essa particularidade mediante o uso do itálico: militaria.

2. É possível também adaptá-lo fonética e ortograficamente ao português – "militária" –, forma não atestada nas fontes dicionarísticas consultadas para a elaboração desta pergunta. Verifica-se, porém, que em muitas páginas da Internet ocorre a grafia "militária"2.

3. Uma terceira opção será usar a expressão «antiguidades militares», que se revela adequada atendendo ao inglês militaria (ver acima).

1 Note-se que em alemão se regista Militaria, nas aceções correspondentes a «livros militares, livros sobre guerra» e «objetos militares» (dicionário alemão-português da Porto Editora; ver também Duden, em alemão). Para esta resposta, não foi possível explorar a relação do termo inglês com o alemão e a eventual repercussão deste na forma portuguesa em causa. Contudo, um exemplo dos corpora da Linguateca sugere estreita afinidade semântica com a palavra alemã: «As unidades normalmente es...

Pergunta:

Gostaria de colocar uma questão relativa à composição de palavras. Relativamente à palavra preposição (lat. prae+positione, sendo que prae é também ela uma preposição + ablativo), gostaria de saber se poderemos considerá-la uma palavra formada por composição: radical + palavra ou se se trata de uma palavra base. A ser considerada uma palavra composta e não uma palavra base, a dúvida prende-se também com o prefixo prae e o seu significado, uma vez que no verbo prepor (lat. prae+ponere) temos o significado de anterioridade ou posteridade na ação. As mesmas dúvidas se colocam em relação às palavras advérbio e pronome, isto é, se podem ser consideradas palavras formadas por composição (rad.+palavra) ou se se trata de palavras simples.

Obrigada.

Resposta:

A pergunta que é feita relaciona-se com aspetos da análise morfológica só abordados nos estudos universitários. Mesmo assim, diga-se que as palavras preposição, advérbio e pronome são todas palavras complexas; no entanto, não são palavras compostas. Na verdade, duas delas – preposição e pronome – podem ser encaradas como palavras complexas  derivadas, ainda que a sua formação em português tenha aspetos históricos importantes:1

a) pre-+-posi-+-ção → preposição;2
b) pro-+nome → pronome.

Numa perspetiva do atual funcionamento da língua portuguesa, considera-se que a) e b) se enquadram em esquemas morfológicos que estão ativos no português contemporâneo, apresentando afixos (prefixos e sufixos) em uso na atualidade e relacionando-se, assim, com casos como prever (pre-+ver) e propor (pro-+por), que incluem, respetivamente, pre- (variante átona de pré-) e pro- (variante átona de pró-).

Quando a advérbio, sendo palavra complexa, não é composta nem derivada:

c) ad+-vérbio

Em c), o elemento -vérbio, embora reconhecível, não corresponde exatamente a uma palavra autónoma do português que seja produtiva na derivação prefixal de outras palavras; é certo que existem provérbio e prevérbio (cf. Dicionário Houaiss), mas não se identificam novos lexemas que exibam, como base de derivação, o elemento -v...

Pergunta:

A expressão correta é «vamos e venhamos» ou «venhamos e convenhamos»? Ou outra? Achei a primeira num livro hoje e me pareceu incorreta.

Grata.

Resposta:

Em textos brasileiros, verifica-se que se usa muito mais «venhamos e convenhamos» do que «vamos e convenhamos» (consultar corpora – ou seja,  coleções de  textos – na Linguateca), o que permite considerar que a forma mais adequada é efetivamente «venhamos e convenhamos» (exemplos retirados da Linguateca)*:

1 – «Vamos e convenhamos: um simples computador pessoal (PC) custa em média dois mil reais [...].»

2 – «Não nos interessa rever a aposentadoria na Previdência Social, piorando-a do ponto de vista dos trabalhadores, muito menos discutir alguns dos projetos que o Governo envia para cá como prioridade, como, por exemplo, o da responsabilidade fiscal que, venhamos e convenhamos, não passa de um mostrengo legislativo.»

Refira-se que a forma corrente Portugal é simplesmente «convenhamos» – como expressão intercalada, à semelhança do uso ilustrado em 2, ou a introduzir uma oração completiva («convenhamos que...»), no sentido de «reconheçamos (a verdade/oportunidade de alguma coisa)», como se infere das seguintes frases (retirados do corpus do jornal Avante, incluído na Linguateca):

3 – «Vasculha-se a memória e é um branco absoluto, um vazio, um buraco negro, enfim, uma ignorância, o que, convenhamos, é chato.» (corpus do jornal Avante, incluído na Linguateca)

4 – «Mas convenhamos com seriedade que a situação é análoga em outras urbes importantes.» (

Pergunta:

Os nomes específicos das notas musicais (, , mi, , sol, , si) são considerados nomes comuns, correcto? Antes do Acordo Ortográfico de 1990, apesar de grafados em minúsculas, será que ,, mi,, sol,, si podiam ser classificados como nomes próprios, considerando que designam o nome individual de cada uma das notas, à semelhança do que acontecia com o nome individual dos meses do ano?

Resposta:

Os nomes em questão já eram considerados nomes comuns antes do Acordo Ortográfico de 1990 (AO).

A pergunta tem todo o sentido, mas a verdade é que, mesmo antes do AO, os nomes das notas musicais eram classificados como substantivos comuns tanto por dicionários (Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, que Artur Bivar publicou em 1949; dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, de 2001) como por vocabulários ortográficos (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940 e Vocabulário da Língua Portuguesa de 1966, da autoria de Rebelo Gonçalves).

Contudo, pode argumentar-se que os elementos deste conjunto são nomes próprios que se tornaram nomes comuns, tal como se faz na Gramática do Português (2013, pág. 1008), da Fundação Calouste Gulbenkian, obra em que se classificam como nomes próprios os que formam séries temporais:

«[São nomes próprios os] [n]omes de intervalos temporais convencionalizados, como os meses do ano (janeiro, fevereiro, março, outubro), as estações do ano (inverno, primavera, verão e outono), os dias da semana (sábado, domingo, segunda-feira) [...]. [...] [D]ado que, num contexto temporal mais vasto, estes períodos recorrem ciclicamente, deixam de ser únicos; talvez por isso, estes nomes, tal como os nomes comuns, adquiriram um significado lexical que se pode consultar num dicionário, deixando de ser sentidos como nomes próprios por muitos falantes. [...]»

Constituindo os nomes das notas musicais uma série semelhante às constituídas por intervalos temporais, parece legítimo atribuir-lhes um estatuto idêntico.

Pergunta:

No Dicionário Enciclopédico de Teologia, do Prof. Arnaldo Schüler (Editora da ULBRA, Canoas, 2002. p. 172), lemos, no verbete édito: «Ordem judicial tornada pública através de editais ou anúncios»; em edito, temos: «Paroxítono. Norma, lei, determinação oficial, decreto, ordem. P.ex.: Edito de Milão (q.v.). No direito romano, complexo de normas jurídicas.» A obra traz, como aponta a abreviatura q. v. (quod vide), o verbete "Edito de Milão".

Dicionários como o Caldas Aulete e o Priberam corroboram as diferenças conceituais apontadas para esses parônimos (não contemplam, todavia, o exemplo "Edito de Milão").

Minha dúvida reside sobre o assim chamado Edito de Milão. Além do compêndio de Schüler, sei que no meio eclesiástico (o "site" do Vaticano é um exemplo), é comum que se empregue o termo paroxítono para se referir ao decreto imperial que deu liberdade de culto a todos no Império Romano em 313, tornando, por conseguinte, o cristianismo uma religião lícita. A língua italiana também faz distinção (vide, p.ex., o Vocabolario Treccani on-line ou o Dizionario di Italiano on-line do Corriere della Sera) entre edito (pronúncia proparoxítona, com o mesmo sentido do nosso acentuado édito) e editto (pronúncia paroxítona, com o mes...

Resposta:

Parece tratar-se efetivamente de uma criação da língua portuguesa a existência de duas palavras divergentes que entroncam no mesmo vocábulo latino – edictum, «ordem, mandado (de pessoa particular); ordem, ordenação, regulamento; direito estabelecido por um edito; enunciado, exposição, elocução, enunciação» –, conforme se observa no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no qual se acrescenta que edictum vem «do radical de edictum, supino de edicĕre "dizer em voz alta, declarar, fazer saber"».

A mesma fonte sublinha ainda que édito é uma criação do meio forense de língua portuguesa, e que, historicamente, apenas a forma edito teria legitimidade histórica:

«[A]o longo do século XIX, criou-se uma dicotomia entre edito e édito; já Constâncio (1836) registra edicto ou edito 'ordem pública, edital' de édito 'ordem, mandado do rei ou de outra autoridade que se afixa nos lugares públicos para que chegue a notícia a todos'; Aulete (1881) segue essa diretriz, e parcialmente Cândido de Figueiredo, que só dicionariza édito na acepção de Constâncio; Bluteau, por sua vez, no século XVII, só registra editto ou edicto 'ordem de um príncipe, República, Magistrado declarada publicamente' e dá como correspondente em latim edictum, i, de edicĕre, apresentando algumas locuções comuns no português, como por exemplo pôr um edicto latim edictum ponere, edictum affigere; Morais (1877) praticamente elucida a questão, registrando édito ou edicto (latim edictum) substantivo masculino 'ordem, mandado do príncipe ou magistrado que se afixa nos lugares públicos para que chegue a notícia a todos', cita um exemplo de Vieira ''proceder por éditos a encartamento...