Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Que significado poderá ter a palavra busões na frase seguinte : «[T]odas essas cantilenas são cheias de busões, fanatismos, superstições, terrores e corcundismos.»

Muito obrigado.

Resposta:

A forma busão* é uma variante de abusão, (cf. Artur Bivar, Dicionário Geral e Analógico da Língua Portuguesa, 1949),  que significa genericamente «ilusão» e «superstição» (cf. Dicionário Houaiss). Regista-se também uma outra forma que tem sentido próximo – trata-se de avejão, que designa «[um] espectro mal-assombrado; fantasma, assombração, avantesma» e, em sentido figurado, «homem de grande estatura e muito feio» (idem). Abusão e avejão são vocábulos que podem ser encarados como variantes um do outro, até porque têm a mesma origem: «lat. *avisio, onis 'visão, fantasma'» (idem).

Refira-se que tanto abusão (ou busão) como avejão são atualmente palavras pouco usadas, de sabor arcaico. A forma busão ocorre na frase em referência justamente porque esta faz parte de um escrito da primeira metade do século XIX, da autoria do brasileiro Ezequiel Corrêa dos Santos e publicado na Nova Luz Brasileira Extraordinaria, n.º1, de 24/12/1829 (citado por  Marcello Basile, "Ideias radicais no Rio de Janeiro regencial: elementos para um debate", Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho 2011, pág. 8).

* No calão/gíria do português do Brasil, a forma busão é o mesmo que ônibus (autocarro).

Pergunta:

No capítulo X de Amor de Perdição [de Camilo Castelo Branco] refere-se que «o padre capelão» estava no «raro lateral da porta». Qual o significado de "raro" enquanto nome? Só encontro nos dicionários como adjetivo e advérbio.

Muito obrigada.

Resposta:

No contexto em questão, raro é variante de ralo (ver o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

Ralo tem, entre outras aceções, a de «placa com orifícios, ou grade, colocada nas portas, nas janelas dos conventos, nos confessionários etc., através da qual se pode observar o que se passa fora, sem ser visto, ou se comunicar com alguém evitando contato direto». É nesta aceção que raro ocorre no texto camiliano, visto ser a referencialmente mais adequada. Com efeito, a ação narrada decorre na portaria dum mosteiro, aonde chega Mariana; e um padre conversa com uma freira – «a prioresa» – havendo entre eles uma porta com um ralo, isto é, uma grade, através da qual conseguem comunicar. Depreende-se que a freira  está no lado de dentro da porta, porque se diz que o padre apreciava a beleza de Mariana, enquanto tinha «outro [olho] no raro, onde a ciumosa prioresa se estava remordendo». Refira-se também que raro é a forma que ocorre efetivamente em Amor de Perdição, mesmo na sua 1.ª edição, de 1862 (p. 115).

Pergunta:

Podiam-me esclarecer como se deu a evolução da palavra ilha? Evoluiu, simplesmente de insŭla-, ou houve versões intermediárias? Por que o N latino se perdeu normalmente, mas o L não? E como foi parar lá o dígrafo lh?

Obrigado.

Resposta:

A palavra ilha não é resultado direto da evolução do latim ĪNSŬLA para o português.

Com efeito, os dicionários referem que o vocábulo terá origem noutro, de origem catalã – illa – o qual terá alcançado esta forma a partir do latim ĪNSŬLA. Diz o Dicionário Houaiss:

«[Do] laim insŭla, ae 'ilha, quarteirão cercado de ruas que o isolam do resto da cidade como o mar isola a ilha do resto das terras', por extensão [semântica] 'casa para alugar, ger[almente] uma pequena ilha pertencente a um mesmo proprietário que residia em seu centro', pelo catalão illa [...]

A mesma fonte acrescenta:

«[H]á a forma divergente "ínsua" (sXIII) mais consentânea com o étimo e documentada um século antes de ilha, mas o elemento inicial in-/i- faz supor que se trate de semicultismo; atribui-se à influência do espanhol e do catalão sobre o português a fixação da forma ilha e, nos derivados, uma equiparação dos radicais espanhol isl(a)- e português ilh(a)-.»

Sobre a palavra ilha, importa também saber o que se diz sobre a palavra correspondente no galego, no qual se escreve geralmente illa (há também quem escreva à portuguesa, ilha). Um linguista galego (Manuel Ferreiro, Gramática Histórica Galega, Edicións Laiovento, 1996, p. 165, n. 186), confirma a etimologia atribuída no Dicionário Houaiss:

«A forma illa (<ĪNSŬLA), seguramente importada do catalán, está especializada semanticamente ('do mar') fronte a insua ('do río').»

Quer isto dizer que a palavra chegou ao português (e ao galego) já com uma configuração...

Pergunta:

Começo por vos dar os parabéns pelo vosso trabalho!

Na frase «[o cão] aninhava-se a seu lado», qual a função sintática desempenhada pelo grupo preposicional «a seu lado»?

Resposta:

Agradecemos as suas palavras de apreço.

Trata-se de um complemento oblíquo. O verbo aninhar, usado pronominalmente (aninhar-se) e a significar «acomodar-se» e «esconder-se», seleciona um complemento oblíquo, conforme a descrição e classificação de Malaca Casteleiro, que, no seu Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Texto Editora, 2007), apresenta os seguintes exemplos:

1 – Após, o jantar, o tio gosta de se aninhar no sofá.

2 – A casa aninha-se entre o arvoredo.

O facto de aninhar-se ter muitas vezes regência construída com a preposição em não impede que se usem outras preposições – como acontece em 2 – ou locuções prepositivas, como se verifica com «ao lado de» no caso em questão.

Pergunta:

Será que me sabem explicar de onde vem a expressão «mereces tudo e um par de botas»?

Um muito obrigada de antemão.

Resposta:

Conhecemos a expressão, mas desconhecemos as circunstâncias que lhe deram origem.

Nas fontes a que temos acesso, não encontramos a expressão «merecer tudo e um par de botas». Contudo, regista-se a expressão «par de botas» com o significado de «problema complicado» quer como entrada (ver Orlando Neves, Dicionário de Expressões Correntes, e Afonso Praça, Novo Dicionário de Calão; neste último, dá-se um exemplo: «não sei como hei de descalçar este par de botas»), quer como subentrada (ver dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Além disso, «tudo e um par de botas» costuma ser locução interpretada como o mesmo que «tudo e o seu contrário», como se deixa explícito na seguinte passagem de um artigo de opinião:

1 – «[...] querem ter todos os direitos e privilégios dos funcionários públicos, mas ao mesmo tempo todas as prerrogativas de quem integra um órgão de soberania. E isso, ter tudo e o seu contrário (ou, usando a linguagem popular, "tudo e um par de botas"), é que não é admissível» (José Miguel Júdice, "Tudo e um par de botas", Público, 17/09/2005).

Contudo, há quem atribua outra intenção, como propõe o consultor Paulo J. S. Barata (comunicação pessoal), que assinala a variante «merecer tudo e mais um par de botas» e considera que a expressão significa  «tudo e mais alguma coisa» ou «tudo e o mais que for»/«tudo e mais que seja», funcionando «como uma espécie de nonsense hiperbólico, já que tudo não admite mais nada – é o tudo e mais algo de "irreal"». De certo modo ao encontro desta interpretação, o consultor Gonçalo Neves (comunicação pessoal) também dá o seu contributo e interroga-se sobre a possibi...