Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber qual é o galicismo existente no trecho abaixo transcrito, extraído da obra Coração, Cabeça e Estômago, de Camilo Castelo Branco (1825-1890):

«Paula fitou-me e coçou a testa com o leque. Noutro intervalo da dança continuei: Por que não respondeu à minha carta? Era impossível. Eu já dei o meu coração. Por delicadeza lhe não devolvi a sua carta, e peço-lhe que me não escreva outra, que me compromete, respondeu ela. Não me soou bem este galicismo dos lábios de Paula. Eu, em todas as situações da minha vida, quando vejo a língua dos Barros e dos Lucenas comprometida, dou razão ao filósofo francês que, à hora da morte, emendava um solecismo da criada, protestando defender até ao último respiro os foros da Língua. E com que admiração eu leio aquilo do gramático Dumarsais, que, em trances finais de vida, exclamava: "Hélas! Je m'en vais... ou je m'en vas... car je crois toujours que l'un et l’autre se dit ou se disent!"»

Muito obrigado pela atenção dispensada.

Resposta:

O verbo comprometer, no sentido de «pôr alguém em risco» ou «levar alguém a uma situação desonrosa», é etimologicamente um galicismo, mas, pelo menos, há perto de 60 anos, já se considerava que era palavra assimilada pela língua, conforme se pode verificar por um comentário de Vasco Botelho de Amaral, no seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, de 1958 (mantém-se a ortografia do texto original):

«Comprometer. É galicismo muito vulgarizado, na acepção de: deixar ficar mal, arriscar, deixar a qualquer em má posição, aventurar, pôr a risco, expor a desar a honra, o crédito, ou a reputação de alguém. Com estas dições se variará o estilo, mesmo que o comprometer já não saia, como parece.»

Pergunta:

Porque é que enviamos cumprimentos no fim de um e-mail ou de uma carta? Procurei o significado da palavra em várias fontes diferentes, e tudo o que surge é uma definição da palavra que surge do verbo cumprir, no sentido de se sujeitar a, realizar o prometido e outras definições na mesma linha.

Obrigada!

Resposta:

O verbo cumprir tinha em português – à semelhança das palavras cognatas noutras línguas de origem europeia – o sentido de «cumprir com a suas obrigações», incluindo as da cortesia e da delicadeza. O derivado cumprimento terá tornado mais saliente essa aceção; mas sabemos que o inglês compliment («elogio») e o francês compliment (o mesmo significado) adquiriram esse significado por analogia com o italiano complimento, «expressão de reverência». Esta forma italiana também influenciou a semântica do espanhol cumplimiento e do português cumprimento. Na nossa língua, cumprimento acabou por ser muito usado como o mesmo que «ato de expressar saudações», ou seja, como forma de despedida que satisfaz o dever de cortesia ou deferência.

Pergunta:

Tenho-me deparado com uma expressão que não conheço e não consigo compreender. Sempre usei «vergonha alheia», num sentido que agora vejo ser usado por algumas pessoas como «vergonha reflexa». Será que me pode explicar se estas expressões estão correctas ou qual a diferença entre elas, se é que a segunda existe sequer?

Obrigada.

Resposta:

Não encontro registo dicionarístico da expressão «vergonha alheia», mas reconheço que a expressão se usa ou já se usou mais para referir a vergonha que se sente pelo comportamento ou pela apresentação de outrem. Noutras fontes, é possível encontrar a expressão quer em textos portugueses quer em textos brasileiros, por exemplo nos corpora da Linguateca (mantém-se a ortografia original):

1 –  «Ou melhor o que me fez sentir uma puta vergonha alheia dela e o jeito que Malu conta parece piorar a situação...»

2 – «A mãe Ângela Cristina é a personagem mais engraçada do livro, suas cenas são sempre as mais legais, passei tanta vergonha alheia lendo esse livro.»

3 – «Confundir irreverência com sensacionalismo e imbecilidade, como bastas vezes aconteceu ao longo da primeira emissão com o inestimável e prestimoso auxílio daquele clown madeirense que em tempos foi conhecido pelo "Barão do Quebra-Costas" e que hoje lidera o Governo regional, deixa no espectador a desagradável sensação de passar por vergonha alheia

4 – «A princípio lhe dava coisa, uma certa vergonha alheia, mas pouco a pouco ele foi se acostumando aos amigos de José e começou a apitar os partidos de voley dos campeonatos promovidos pelo Grupo Gay de Madri.»

Quanto a «vergonha reflexa», também não encontro registos lexicográficos, mas depreendo que significa o mesmo que «vergonha alheia» pela informação disponível numa página da Internet. Ocor...

Pergunta:

Usa-se a expressão «ao início», ou «no início»? Por ex.: «No início ele ficou com dúvidas...», ou «Ao início ele ficou com dúvidas...» (eu digo sempre «no princípio ele ficou com dúvidas...»)? Não uso normalmente a palavra início, mas agora ouço muito este termo, tal como ouço «no final». Por ex.: «No final do mês eu informo-te...» Para mim será «no fim do mês». [...] Será que me pode tirar esta dúvida?

Resposta:

Os usos em causa são casos de variação, legítimos à luz da norma.

As fontes portuguesas consultadas (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho) registam «de início», no sentido de «ao princípio» e «no começo». A expressão «de início» apresenta variantes que provavelmente decorrem da analogia com variantes das expressões suas sinónimas: «ao início», «no início»; «ao começo», «no começo», «de começo»; «no princípio», «ao princípio». Assinale-se, porém, que, entre alguns doutrinadores normativos, tem havido por vezes comentários reprovadores do uso de início e iniciar como sinónimos de começo e começar. Mesmo assim, entre outros normativistas, existe há muito a opinião de que não há razão para condenar o uso de início ou iniciar nessas aceções; foi o caso de Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958, p. 176; mantém-se a ortografia do original):

«Iniciar. Não assiste razão aos que o refutam na acepção de começar, principiar, dar começo, dar princípio, etc., que evidentemente podem variar o estilo. Aliás, o próprio começar é provável que derive de cum initiare, *cominitiare, e, portanto, no mesmo sinónimo entra o verbo criticado. A forma ar...

Pergunta:

Quando me refiro à cor azul anil, devo escrevê-la com hífen?

Obrigada!

Resposta:

Em princípio, basta anil, porque esta palavra, por si só, já significa «certa tonalidade de azul» (Dicionário Houaiss), mas se a palavra tiver de estar associada a azul, então, justifica-se o hífen: azul-anil.

A palavra anil pode usar-se sozinha, para designar certa tonalidade de azul: «céu anil». Mas atesta-se a sua associação a azul, por exemplo, sem hífen: «diz-se de certa tonalidade de azul. Ex.: "janelas de cor azul anil"» (Dicionário Houaiss, 2009). No entanto, este exemplo de não hifenização é discutível, quando, para designar diferentes tonalidades de azul, se empregam compostos em que azul é nome ou adjetivo seguido de outro nome ou adjetivo; e estes casos exibem hífen: azul-marinho (azul + adjetivo), azul-seda (azul + nome), azul-turquesa (idem), azul-violeta (idem). Sendo assim, afigura-se preferível e recomendável que se escreva azul-anil, com hífen, em lugar de «azul anil».

Acrescente-se que, do ponto de vista ortográfico, se infere do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) que os nomes e adjetivos referentes a cores constituídos por duas palavras que mantêm o seu acento próprio, sem elemento de ligação entre elas (isto é, sem preposição), são tratados como compostos hifenizados, tal como acontece com azul-escuro (sublinhado nosso):

«Base XV – Do hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares

1 – Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e...