Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de ser esclarecida na seguinte dúvida: será correto dizer «cinquenta e tal anos» ou será, antes, «cinquenta e tais anos»?

E porquê?

Muito obrigada desde já pela resposta.

Resposta:

A expressão mais correta é «e tal», depois de numerais: «cinquenta e tal anos».

A forma que está dicionarizada é «e tal» (ver subentrada de tal, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), ocorrendo sempre no singular, a acompanhar numerais cardinais, com o significado de aproximação numérica: «Vinte e tal pessoas entraram no recinto», «Das cem pessoas entrevistadas, cerca [sic] de vinte e tal reuniam os requisitos» (exemplos do referido dicionário; no segundo, é discutível o uso de cerca, que exprime valor aproximado, associado a uma expressão, também aproximativa). O Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira) classifica esta locução como lusismo, ou seja, como locução típica do português de Portugal, equivalente a «poucos» ou «tantos» («cinquenta e poucos», «cinquenta e tantos»). Seja como for, a forma que está registada em dicionários e tem uso estável é, portanto, «cinquenta e tal anos», o que permite considerá-la como correta: «ele tem cinquenta e tal anos».

Dito isto, pensar-se-ia que «e tais» é claramente um erro de expressão. Não é, porque tal pode ser reinterpretado como um determinante e como um pronome: «não sei a idade dele, mas deve ter cinquenta e tais» («tais» é pronome), «ele deve ter cinquenta e tais anos» («tais» é determinante). Este uso aparece tanto na oralidade como em textos literários portugueses de finais do século XX: «Sim, depois há-de fazer alguma coisa quando chegar à idade dos trinta e tais» (Corpus de Referência do Português Contemporâneo in Corpus do Português); «Sabiam, pois, que estavam esquecidos pelo mundo, apesar das cinquenta e tais maneiras com que o mundo lhes ia diariamente a casa.» (Hélia Correia, Insânia, 1996, idem). Porém, «e tais» pode evidenciar algumas incompa...

Pergunta:

Qual o processo de formação da palavra recém-chegado?

Resposta:

Não há consenso sobre a classificação do elemento recém-, que, nas gramáticas e dicionários, pode ser classificado quer como prefixo quer como elemento de composição. Pode afirmar-se que recém- é um prefixo, porque funciona como os prefixos. Mesmo assim, não se deve rejeitar a classificação de recém- como elemento de composição, dada a sua relação com recente e recentemente.

Por um lado, a forma recém- aparece descrita como resultado de apócope, isto é, a que faltam segmentos finais ou até uma sílaba – neste caso, o -te de recente (num uso adverbial, idêntico ao advérbio recentemente) –, o que levaria a classificá-la como um elemento de composição (cf. recém- no Dicionário Houaiss) e a incluir recém-chegado entre palavras compostas que contam com advérbios entre os seus constituintes (ex. bem-vindo, maltratado). No entanto, verifica-se que já em 1966 se classificava recém- como prefixo (cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa); e o mesmo se faz na Gramática Derivacional do Português (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 446), de Graça Rio-Torto et al., na qual recém- figura entre os prefixos de localização espaciotemporal.

Atendendo ao caráter adverbial de recém-, por um lado, e à maneira como se associa a outra palavra como se fosse um prefixo, não é, portanto, descabido incluir este elemento entre os chamados «pseudoprefixos» ou «falsos prefixos», ou ...

Pergunta:

Gostaria de saber acerca do uso correto do termo «em seguida» ou «seguida(o)(s)». Qual é a maneira correta de relatar um fato que ocorre seguidamente ou consecutivamente?

Por exemplo, qual é a frase correta?

«A Ponte Preta venceu dez jogos em seguida», ou «a  Ponte Preta venceu dez jogos seguidos»?

Obrigado.

Resposta:

«Em seguida» significa «logo após; imediatamente»:

1. Fui à praia e, em seguida, voltei para casa. [embora neste contexto, também seja possível «de seguida» no português de Portugal: «de seguida, voltei para casa»]

«De seguida» significa «continuamente»:

2. A Ponte Preta venceu dez jogos de seguida. [neste contexto, não se aceita a substituição por «em seguida»]

Em alternativa a «de seguida» em 2, também podem usar-se as formas adjetivais «seguidos» ou «consecutivos»:

3. A Ponte Preta venceu dez jogos seguidos.

4. A Ponte Preta venceu dez jogos consecutivos.

Pergunta:

Eu queria saber se o verbo dizer no infinitivo é regido de que:

«Se tu queres assim, quem sou eu para dizer que não», ou «se tu queres assim, quem sou eu para dizer não»?

Resposta:

Aceitam-se as duas construções, que, embora praticamente sinónimas, apresentam uma pequena diferença:

1. Quem sou eu para dizer não. = ... para dizer a palavra não.

2. Quem sou eu para dizer que não. = ... para dizer que não quero isso/não concordo.

Note-se que não há impedimento para um verbo no infinitivo ser seguido da conjunção que – não se trata de regência, porque não é uma preposição. Exemplos:

3. Não quero dizer que discordo de ti.

4. Gostaria de informar que vai realizar-se uma nova reunião.

Em 3 e 4, os infinitivos dizer e informar são seguidos da conjunção que, porque são verbos que podem selecionar orações completivas («que discordo de ti» em 3, e «que vai realizar-se uma nova reunião» em 4).

Pergunta:

Na frase «a imagem desapareceu do espelho», a expressão «do espelho» desempenha a função de complemento oblíquo, ou de modificador do grupo verbal?

Muito obrigada.

Resposta:

Em Portugal, na terminologia atualmente usada no ensino não universitário – o Dicionário Terminológico * –, trata-se de um complemento oblíquo, dado que marca o espaço onde se dá o evento (o desaparecimento). Ao contrário do que acontece com verbos acompanhados por todos os seus complementos (caso de «o João pôs os talheres na gaveta»; ver o que se diz sobre o verbo pôr aqui), os verbos de movimento podem não marcar obrigatoriamente o seu complemento oblíquo, uma vez que essa informação espacial pode ficar subentendida e estar acessível por meio do contexto da frase (seja o discurso anterior, seja a situação de comunicação). É o caso de chegar ou de sair, bem como o de desaparecer.

Na terminologia gramatical tradicional de Portugal, dizia-se que, no contexto em questão, «do espelho» era um complemento circunstancial de lugar donde. Na terminologia brasileira, trata-se de um complemento verbal.

* Ver, ainda, aqui, o resumo do Dicionário Terminológico.