Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Diz-se «se se conseguir lembrar de onde ele está», ou «se se conseguir lembrar onde ele está»? E há diferença se a frase for negativa? «Não me lembro de onde ele está»/«não me lembro onde ele está».

Obrigada.

Resposta:

Recomenda-se o uso da preposição de:

1. «Se se conseguir lembrar de onde ele está...»1 

No entanto, na oralidade, é muito frequente a omissão desta preposição, que liga o verbo que a seleciona a uma oração:

2. «Se se conseguir lembrar onde ele está...»

Observe-se que «onde ele está» pode ter sentido quer declarativo («não se lembra do lugar onde está») quer interrogativo (subentende «onde está ele?»). Também importa assinalar que a Gramática de Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 1873) regista a possibilidade de omitir a preposição:

«As orações interrogativas parciais2 não introduzidas por um sintagma preposicional podem ser precedidas de de, embora a omissão seja sempre uma possibilidade, pelo menos para a maior parte dos falantes (à semelhança do que sucede em completivas oblíquas de tipo declarativo)3:

(216) a. Não me lembro (de) [onde pus as chaves].

         b. Não nos informaram (de) [quantas pessoas vêm à festa].»

 

1 A frase não está completa. Para isso, teria de ter, por exemplo, a seguinte formulação: «Se se conseguir lembrar onde ele está, fico muito contente.»

2 Uma oração (ou frase) interrogativa parcial é uma oração em que, direta ou indiretamente, se pede a identificação de um constituinte da frase. Por exemplo, a respeito do local de nascimento de Fernando Pessoa, pode-se perguntar «onde nasceu Fernand...

Pergunta:

Por que motivo se designa, nalguns manuais, a categoria de pronome pessoal, quando este não se refere a uma pessoa, mas sim a um objeto? Parece-me incoerente. Vejamos o caso: «Vamos comprá-la (uma casa).» Neste exemplo seguinte já faz sentido: «Ele cumprimentou-a (a Raquel).» Podiam explicitar-me o motivo de se chamar pronome pessoal no primeiro caso?

Muito obrigado pelo vosso tempo.

 

Resposta:

Trata-se de um termo tradicional que se justifica sobretudo pelo facto de os pronomes pessoais se referirem aos participantes de uma situação, entre os quais se contam as pessoas do discurso: eu, me, mim, comigo; tu, te, ti, contigo; nós, nos, connosco*; vós/vocês, vos/os, vos/lhes, convosco/com vocês. Estes pronomes são, portanto, pessoais, não porque se refiram sistematicamente a pessoas ou seres humanos, mas, sim, porque marcam as pessoas (em latim, personae, que significa não só «pessoas» mas também «figuras, papéis interpretados por atores»; cf. Dicionário Houaiss) envolvidas numa situação. Os pronomes pessoais de 3.ª pessoa levantam o problema de poderem referir-se a entidades sem o traço [+humano]. No entanto, mesmo nestes casos, a descrição gramatical mantém o termo «pronome pessoal».

*No Brasil, conosco.

 

Pergunta:

Diz-se «podem poupar-me à esmagadora humilhação», ou «podem poupar-me da esmagadora humilhação»?

Obrigada.

Resposta:

As duas preposições estão corretas, e o contraste de significados é mínimo:

1. alguém poupar-se a, poupar alguém/alguma coisa a

«pronominal não aceitar ou deixar de fazer (algo); esquivar-se, eximir-se, furtar-se Ex.: <poupar-se ao trabalho> <poupar-se a um aborrecimento>» (Dicionário Houaiss, s. v. poupar)

2. alguém poupar(-se) de, poupar alguém /alguma coisa de

«proteger(-se) de esforços, de trabalhos pesados ou de choques emocionais Ex.: <é preciso poupá-la deste trabalho durante a gravidez> <poupar os idosos de desgostos> <poupei-me desses problemas>» (idem, ibidem).

Pergunta:

Conhecem a palavra tirone? O termo surgiu numa conversa familiar, em referência a uma pessoa com boa apresentação e sempre bem vestida.

Obrigado e parabéns pelo vosso trabalho.

Resposta:

Não se acha registo da palavra nem nos dicionários gerais, mas o dicionário de A. M. Pires Cabral, Língua Charra (Âncora, 2013), recolhe-a, juntando-lhe o seguinte comentário: «TIRONE. s. Janota. [ouvido em] Águas Santas, Vila Real. Cremos que o uso da palavra remonta a meados do século passado, em que era muito popular um actor de cinema americano chamado Tyrone Power. A ser assim, trata-se de termo de origem urbana que se propagou ao linguajar rural.»

Sobre Tyrone Power (1914-1958), pode consultar-se, por exemplo, o artigo que a Wikipédia lhe dedica.

Pergunta:

Será aceitável dizer «eu sei o que é um coma»? O artigo faz sentido, na frase? Ou devemos sempre dizer «Eu sei o que é estar num estado de coma»?

Resposta:

Tem sentido usar o artigo indefinido com coma, e não se pode dizer que seja incorreto. No entanto, certas propriedades semânticas da palavra e o facto de o seu uso se sujeitar a combinatórias vocabulares fixas determinam que a interpretação de «um coma» não seja exatamente a do seu significado mais genérico.

Assim, em português, diz-se «o coma» ou «o/um estado de coma», ou, ainda, com adjetivação, «um coma profundo», mas parece menos habitual dizer-se que alguém está «num coma», só com artigo indefinido; o que vai ao encontro do juízo hesitante sobre a aceitabilidade de «eu sei o que é um coma». Neste último caso, a formulação mais corrente será «eu sei o que é o coma» ou «eu sei o que é o estado de coma», ou, ainda, «eu sei o que é um estado de coma», sobretudo se com estas frases o enunciador pretender declarar que tem a capacidade de definir ou descrever o estado de coma. Observe-se igualmente que «estar em/de coma», «entrar em coma» ou «continuar/permanecer em coma», sem artigo definido nem artigo indefinido, são expressões consagradas que parecem funcionar globalmente como unidades lexicais em que os verbos atuam como suportes do substantivo coma, evidenciado que a palavra resiste a uma determinação e até à pluralização. Com efeito, nota-se que coma associado a quantificadores numerais se interpreta como «caso de coma», como se verifica no seguinte exemplo:

1. «Nos quatro dias, foram atendidos no local 626 homens e 274 mulheres. Dois comas alcoólicos, reacções alérgicas ao bicho dos pinheiros, queimaduras solares e provocadas pelos tubos de escape, alguns traumatismos e gastroenterites foram as principais maleitas registadas naquela unidade» (Correio da Manhã...