Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Duas palavras: Caschopadre/Cachopadre e Sisto.

Têm ascendência germânica?

Resposta:

O nome de lugar (topónimo) Cachopadre1 (Freamunde, Paços de Ferreira) não parece ter origem germânica.

Terá antes origem num composto formado:

– por cacho, um vocábulo arcaico que significava «pedaço de terra» e se relaciona com o regionalismo de Entre Douro e Minho cachar, verbo que significa «preparar (terra ou terreno) para cultivo; arrotear, surribar» (cf. Dicionário Houaiss) e com o substantivo cachada, «campo que proveio da roça do mato»;

– e padre, que pode não o nome comum padre, mas sim uma forma do nome próprio latino Patrius, o qual, no entanto, não se atesta na toponímia prtuguesa  (ver Joseph-Maria Piel, "Nomes de Possessores Latino-Cristãos", Biblos, 1947, p. 345).

Note-se que há vários topónimos que exibem a raiz cach-, de cacho, provavelmente na aceção acima referida: Cachoufe, Cachousende, Cachafrõe, Cachadoufe. Na Galiza também há exemplos: Cachosenande (Corunha), Cacharequille (Ourense), Cachalvite (Ourense) – cf. Nomenclátor de Galicia. Na maior parte dos topónimos referidos, o segundo elemento tem origem em nomes germânicos medievais. Mas o caso de Cachopadre será uma exceção, uma vez que se afigura plausível que o segundo elemento seja de origem não germânica.

Quanto a Sisto (em Silvalde, espinho, e em Vila Nova de Famalicão), também não se encontra aqui uma origem germânica. Há quem o atribua ao nome pessoal (antropónimo) Sixto, mas é também se põe a hipótese de provir de um...

Pergunta:

A cidade de Sydney, na Austrália, é traduzida para português como "Sidney"?

Questiono a razão de apenas um dos "y" ter sido substituído por um "i" e não ambos. Parece-me que seria mais lógico manter os dois "y", ou então substituir ambos.

Resposta:

Nas fontes aqui consultadas1, não se indica que o topónimo australiano Sydney se transponha para português da forma apresentada na pergunta.

Na verdade, o que o uso e os registos enciclopédicos disponíveis mostram é que:

– mantém-se a forma inglesa Sydney;

– em alternativa, disponibiliza-se o registo Sídnia, que, no entanto, parece muito pouco usada.

Existe a forma Sídnei, como aportuguesamento do nome de pessoa (antropónimo) Sidney, este, sim, escrito com i na primeira sílaba.

1 As fontes consultadas são um vocabulário ortográfico e dois dicionários onomásticos, obras que têm impacto normativo: Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa (1999) da Academia Brasileira de Letras e José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa.

 

Nota do consultor (05/03/2024) – Alterei ligeiramente a resposta acima, para indicar que as fontes consultadas têm expressão normativa. A alteração foi feita na sequência do seguinte comentário do consulente Giovanni Saponaro:

«Na resposta à pergunta Sydney, Sídnia e Sídnei lê-se que, nas fontes consultadas, o nome aparece como Sydney

Pergunta:

Há quem use, por influência francesa, o termo "foliatação", em vez de foliação, para designar a numeração dos fólios num manuscrito ou impresso antigo.

Dado que numerar folhas é um dos sentidos, recolhido em dicionário, do verbo foliar, a forma derivada correcta será foliação.

Foliatação suporia a existência, em português, do verbo "foliatar".

Pergunto se "foliatar" está atestado e, em caso negativo, se posso argumentar, baseado na coerência linguística, que se deve preferir a forma "foliação" ao galicismo "foliatação".

Resposta:

Nos dicionários gerais a que temos acesso, portugueses ou brasileiros (Infopédia, Priberam, Academia das Ciências de Lisboa, Aulete, Houaiss, Michaelis), não se encontra registo de "foliatar".

A forma que se regista, homónima da de um outro verbo (foliar, «viver em folia»), é foliar, em duas aceções: «relativo a folhas» e «numerar por folhas; paginar» (há dicionários que apresentam as duas aceções de foliar como duas entradas diferentes, ou seja, como verbos diferentes). Sendo assim, o nome derivado de foliar deverá ter a forma foliar, e não "foliatação", que será uma adaptação do francês foliotation, derivado de folioter (cf. Ortolang e o verbo francês numéroter, «numerar»).

Foliação é também a forma registada no Dicionário do Livro (2008), de Maria Isabel Faria e Maria da Graça Pericão.

Pergunta:

«Propus-me ver isto» ou «Propus-me a ver isto»?

Ainda não está claro para mim se o a é necessário, opcional ou errado.

Obrigado.

Resposta:

A preposição a é opcional.

Os dicionários portugueses consultados não são esclarecedores, mas na lexicografia brasileira há informação sobre o funcionamento deste verbo conjugado pronominalmente e seguido de infinitivo. Por exemplo, no Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Pedro Luft, lê-se o seguinte:

«OBS.2 A regência [propor algo a alguém (propor-lhe algo)], com a substituição de "a alguém" por pronome reflexivo, mostra [propor-se + Infinitivo] como a construção lógica: o "se" como objeto indireto e o infinitivo como objeto direto, portanto sem preposição. Mas o uso, há muito (cf. Morais), consagrou também a construção [propor-se + a + Infinitivo], decerto por causa de semânticas como "aventurar-se (a)" e "dispor-se (a)": " ... aquele que se propuser a arrematá-los” (Código de Processo Civil: Kaspary). "Quem [...] se propuser ao exercido da química” (CLT: id.). "... fundações, que se proponham a fins iguais” (Código Civil: id.). “ ...objeto e fim a que se propõem "(Código Comercial: id .)“ .. quando nos propomos a fazer alguma coisa” (Ivo Pitanguy: Clarice Lispector). ‘'Nenhum arquiteto se propõe a resolver o problema das favelas” (Oscar Niemeyer: id.). Na dúvida, recomenda-se a sintaxe "propor-se" + Infinitivo, sem "a" (até por economia), sem condenar a inovação do uso. A semântica "apresentar-se, oferecer-se, sugerir-se" (cf. 6 e 7), obviamente, pede "a" + Infinitivo, com o reflexivo de objeto direto.»

É curioso observar que, na secção histórica do Corpus do Português, as ocorrências de propor-se + a + infinitivo são muito pouco frequentes em textos de Portugal em comparação com os textos do Brasil. Dir-se-ia, portanto, que em Portugal se prefere a construção sem preposição propor-se + infinitivo, mas é também possível que os contextos selecionados, por alguma razão t...

Pergunta:

A pedido de um colega, estou revendo um texto da área médica que contém repetidas vezes frases como esta:

«Setenta por cento dos pacientes foram definidos como apresentando um baixo grau de sangramento.»

A mim, soa muito mal o gerúndio após «definidos como», mas não sei justificar por quê.

O que há de errado? Uma sintaxe calcada no inglês? Ou seria uma construção aceitável?

Grata pela atenção.

Resposta:

Do ponto de vista gramatical, a frase não está incorreta.

O problema não está no gerúndio, mas sim na sequência «definidos como», que provavelmente reflete um uso estereotipado, que ocorre em artigos científicos: «to be defined as showing (something)».

Esta estrutura é reproduzida literalmente em vários artigos científicos:

(1) «Este custo, é definido como sendo uma variação eleitoral negativa para os partidos em funções governativas nos atos eleitorais consequentes [...]» (PMO Reis, "O custo de governar para além do governo: o caso dos partidos de suporte", repositório da Universidade do Minho, 2022).

(2) «O crescimento pós-traumático (CPT) é definido como sendo o processo através do qual o indivíduo é capaz de experienciar mudanças psicológicas positivas [...]» (Maria Teresa G. C. Canavarro, "Crescimento pós-traumático em jovens sobreviventes de cancro : estudo das relações com as variáveis intervenientes", repositório da Universidade do Minho, 2019).

(3) «O presentismo é definido como sendo o ato de o profissional encontrar-se a trabalhar mesmo estando doente e sem condições para tal» (Hegnar Suleyman, "Presentismo dos profissionais de saúde em Portugal no século...