Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em assentos eclesiásticos, encontramos frases do tipo:

«João de tal, viúvo que ficou de Maria de tal, casou-se com Joana de tal.»

Napoleão Mendes de Almeida, no seu Dicionário de Questões Vernáculas, parece discordar de Vasco Botelho de Amaral quanto à função da conjunção que com valor temporal. Qual a função sintática da conjunção que nesse contexto?

Muito obrigado!

Resposta:

O que se pode aqui apurar não se afasta do que refere o consulente: é uma estrutura de análise não consensual.

Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, 2003, p. 525) menciona de algum modo esta estrutura quando fala da construção de particípio passado seguido de que e do verbo ser; ex.:

«Acabado que foi o prazo destinado à revisão, os candidatos continuaram insatisfeitos.»

Bechara assinala que há discordância quanto à natureza deste que posposto ao particípio, e cita dois autores:

– é conjunção (Maximino Maciel), e a oração em que ocorre é um caso especial de oração reduzida de particípio;

– é pronome relativo (Epifânio da Silva Dias, Sintaxe Histórica Portuguesa, §91, c).

Bechara prefere a segunda perspetiva, que parece considerar a possibilidade de que ter como antecedente um adjetivo ou um particípio passado.

É, portanto, uma questão difícil, sem uma resposta inequívoca.

Pergunta:

Em relação à sintaxe do verbo pedir, para além das regências habituais (que, para, por), parece-me possível dizer-se «Vou pedir COMO presente uma bola».

No entanto, a mesma frase com a preposição de é possível?

«Vou pedir DE presente uma bola.»

Obrigado.

Resposta:

Ambas as preposições são possíveis e corretas, no sentido de «como oferta» e associadas a «dar/receber/trazer/levar alguma coisa».

A expressão «de presente» tem atestação literária, mesmo em Portugal:

(1) «... a compensação dos muitos amargos de boca que a vida lhe dera de presente..» (Alexandre Cabral, Margem Norte, 1979, em Corpus do Português)

(2) «Jorge trouxera-lhe como presente seis pratos de louça da China [...].» (Eça de Queirós, O Primo Basílio, 1878, ibidem)

Pergunta:

Gostaria de saber se existe alguma diferença no uso dos advérbios respeitosamente e atenciosamente no fecho de uma carta formal no português europeu.

No Brasil, por exemplo, o Manual de Redação da Presidência da República estabelece o emprego de dois fechos diferentes para todas as modalidades de comunicação oficial:

a) para autoridades superiores, inclusive o Presidente da República: «Respeitosamente»;

b) para autoridades de mesma hierarquia ou de hierarquia inferior: «Atenciosamente».

Desde agradeço a atenção dispensada.

Resposta:

Em Portugal, usam-se geralmente fórmulas como «Com os melhores cumprimentos» ou «Cumprimentos», mesmo em ofícios, ou seja, na correspondência administrativa interna1.

Na correspondência de caráter mais comercial, emprega-se também «Atentamente» e «Atenciosamente».

 

1 Ver exemplos de escrita burocrática em Falar Melhor, Escrever Melhor (Lisboa, Seleções do Reader's Digest, 1991, pp. 258-264). Consultar também José Calvet de Magalhães, Manual Diplomático, (Lisboa, Editorial Bizâncio, 2005, pp. 138-144).

Pergunta:

Quanto ao verbo terminar, em português europeu padrão se diz «terminar por», à semelhança de «acabar por» ou terminar seguido de gerúndio, por exemplo:

«Ele terminou confessando a verdade.»

«Ele terminou por confessar a verdade.»

Muito obrigado!

Resposta:

No português de Portugal, tem preferência a construção «terminar por» seguida de infinitivo, à semelhança de «acabar por»: «terminou por confessar» = «acabou por confessar».

Contudo, é preciso notar que a construção terminar + gerúndio («terminou confessando») pode tornar-se ambígua, confundindo-se com um outro uso, o do verbo terminar seguido de um gerúndio pra exprimir o modo como termina um discurso ou uma intervenção:

(i) «Com pavor triste, recordava os piores tempos do Absolutismo, a inocência soterrada nas masmorras, o prazer desordenado do Príncipe, sendo a expressão única da Lei! E terminava perguntando ao Governo se cobriria este seu agente [...]» (António Patrício, Serão Inquieto, 1910, in Corpus do Português)

Pergunta:

«Questões de consciência e de representação do espaço foram elaboradas e assimiladas, [ao largo dos / ao longo dos] séculos XIX e XX, para a definição concreta e imaginária do território como fundamento de soberania do Estado nação.»

Ambas as expressões são equivalentes no sentido temporal?

Obrigado!

Resposta:

A forma portuguesa da locução prepositiva em apreço é «ao longo de», tanto em sentido espacial como sem sentido temporal.

A locução «ao largo de» tem outros significados, como evidencia os dicionários elaborados no Brasil e em Portugal – por exemplo:

«ao largo de: fora de, longe de, a distância. Ex.: "ao largo do litoral"; "ele se manteve ao largo das disputas".» (Dicionário Houaiss)

«ao largo de locução prepositiva "no mar, frente às costas de": O navio está ancorado ao largo da ilha de São Miguel. «Restam navios que passam ao largo da costa, demasiado longe para que sejam reais.» (J. De Melo, Gente Feliz, p. 484) «pelo menos oito países árabes deverão participar, no próximo mês, em manobras navais conjuntas promovidas pelo Canadá, que se realizarão ao largo das costas da Tunísia.» (Expresso, 25.2.1995).» (Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa)

Assinale-se, no entanto, que largo pode adjetivalmente substituir longo, como intensificação em certos contextos:

«5. que é demorado; sinónimos: dilatado; duradouro; longo – Estiveram ao telefone mais de duas horas, numa larga conversa. Voltou à terra depois de larga ausência no Brasil. Conseguiram o que queriam depois de largos esforços.» (ibidem).