Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A peça de teatro Náufragos, de Fernanda de Castro (1900-1994), apresenta várias marcas do falar algarvio. Importa referir que toda a ação se desenrola em ambiente de pescadores. Assim, em contexto, solicita-se algum apoio no esclarecimento das expressões:

1. Emposta (será imposta/impostora?) – «Desde a Senhora da Encarnação que não me vê com bons olhos. Tudo por via do Amândio. Quando reparou nele a bailar comigo, pôs-se logo numa fúria, e vá de me tratar de falsa, de vadia e de emposta, defronte de toda a gente...»

2. Nágnas e Charlocas (náguas/anáguas e chalocas ?!) – Aquilo é que é uma bruteza. Ele são saias de pano fino, ele, charlocas bordadas, ele, nágnas de folhos, ele, corpos de chita…

3. Abiscámos (será um trocadilho popular com a ideia do isco) – Vou à do Bento… Andamos a concertar um negócio de sardinhas com os da fábrica… Já lhe abiscámos uma bruteza de encomendas. (à Rita) Anda daí Rita… Disse à Maria Rosa que te levava…

4. Brasalisco (será relacionado com inquietude?) – «Se desde mocinha me metes pena. Não te lembras? Quanto a gentinha caçoava dos trapos que te prantavam em riba, eu punha-te às cavalas, e fugia, fugia às carreiras até te fazer rir. Que chuvenisco tu eras, ó Mariana! Mesmo, mesmo um brasalisco.»

Pode, porventura, existir algum destes vocábulos mal escritos, uma vez que se retirou diretamente do manuscrito.

Resposta:

Respondendo pela mesma ordem:

1. "Emposta" é variante de imposta, forma do género feminino de imposto, que significa (ou significava) «enjeitado, exposto», isto é, «filho de pais incógnitos, geralmente abandonado».

2. A forma "nágnas" pode bem ser uma gralha, por náguas. Se sim – é bem provável – nágua ou anágua é «saia de baixo». "Charlocas" será deturpação ou variante de chalocas, sinónimo de cloques, «sapatos de ourelo».

3. "Abiscámos" não tem registo nas fontes aqui consultadas, mas sugere-se que tem que ver com catrapiscar, «namorar, conquistar».

4. Também não se achou registo de "brasalisco", mas parece sinónimo de chuvenisco, geralmente, o mesmo que chuvisco, mas no contexto em questão infere-se que é usado figurativamente como «pessoa, coisa pequena, minúscula». Não se encontrou atestação desta aceção nas obras de apoio.

Fontes: Revista Lusitana, Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves, e Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo.

Pergunta:

Sou francesa e ando a estudar português.

Não sei bem como pronunciar a terminação "ie" em palavras como superfície, calvície, cárie, lingerie.

 É a mesma pronúncia que a terminação "i" nas palavras aqui, javali, táxi, álibi?

Devemos ouvir um pouco a letra e? Ou a pronúncia do i em ie é mais longa por causa do e final?

Ou a pronúncia do i e do e em ie são diferentes se o i for tónico ou átono?

Muito obrigada pela sua resposta e disponibilidade.

Resposta:

Muitos parabéns à consulente pela iniciativa de estudar a língua portuguesa.

Na perspetiva do padrão de pronúncia do português de Portugal, a terminação -ie tem pronúncia instável em superfície e calvície.

Superfície pode pronunciar-se como: a) "superfíci", e portanto a terminação "ie" soa como a de táxi ou álibi; b) "superfícii", e neste caso a terminação parece mais longa; c) ou "superfice", com o e neutro ou mudal final de crendice.

Quanto a calvície, é caso semelhante ao anterior, pois soa "calvíci" ou "calvícii" ou "calvice".

Relativamente às outras duas palavras: cárie: "kári"; lingerie: "lanjerí".

Nestes casos, a sequência ie á sempre átona, pós-tónica. Se se encontrar noutra posição de palavras, soará como um ditongo crescente, ie: piedade, higiene.

Pergunta:

Por diversas vezes já me deparei com as formas «desprezar a» e «desprezar aos», inclusive em escritores célebres, muito embora tenha aprendido que o verbo desprezar, em língua portuguesa, é transitivo direto. Portanto, as formas supracitadas com a preposição estariam incorretas ou seriam um galicismo a partir da forma francesa «mèpriser à/aux»?

Muito obrigada!

Resposta:

O verbo desprezar é atualmente transitivo direto, isto é, usa-se com objeto direto, razão por que a forma correta é de facto «desprezar os humildes», e não «desprezar aos humildes».

Note-se, porém, que, na história do português, o mesmo verbo podia funcionar como transitivo indireto:

(1) «... mostrando eles algumas vezes nestas práticas sobre a lei de Deus que desprezavam ao irmão Fernandes» (João de Lucena, Historia da Vida do Padre S. Francisco Xavier, 1600 in Corpus do Português)

O exemplo em (1), que se repete noutros textos dos séculos XV a XVIII, não parece refletir influência francesa, porque esta só se tornou efetiva no português a partir de finais do século XVIII e depois ao longo do século XIX. É, portanto, um tanto questionável que o uso transitivo indireto de desprezar seja apenas um galicismo, como alguns gramáticos pretendem. Torna-se, pois, possível que os casos literários em causa se devam a um arcaísmo.

Seja como for, atualmente o verbo em questão funciona hoje como transitivo direto: «desprezar os humildes».

Pergunta:

Agora que o "keffiyeh" está na moda, fiquei surpreendido por não existir nome em português para o famigerado lenço! Em artigo sobre a matéria, de 2023/12/19, publicado em jornal de referência, vejo que apenas é usado o termo "keffiyeh", exatamente como registado no Dicionário da Academia! Já quanto à "burca", em artigo do mesmo jornal, de 2022/05/07, é usado o nome "burqa"! Não sei qual o critério usado pelo jornal na escolha do termo “burqa”, em detrimento de “burca”! Na verdade, o nome "burca" não aparece no Dicionário da Academia online, mas aparece em muitos outros! Será que não existe forma portuguesa ou aportuguesada para o dito lenço?!

Resposta:

Ao contrário de burca, que é aportuguesamento estável, com registos com, pelo menos, duas décadas, para keffiyeh não há adaptação portuguesa consensual nem de uso frequente.

Por enquanto, não existem critérios uniformes para a transcrição e transliteração do árabe (e dos seus dialetos) para o português. Sabendo que a palavra se escreve كُوفِيَّة, cuja romanização é kūfiyya (cf, ISO 233-2), um aportuguesamento possível e coerente seria "cúfia". Considerando a forma internacional, de pendor anglicista, keffiyeh, pode propor-se a forma "quefié", que já conta ocorrências no português do Brasil.

Em todo o caso, repita-se, não é palavra que tenha aportuguesamento estável e reconhecido.

Pergunta:

Qual a origem da palavra mana (com o sentido de «energia mística e mágica»)?

Conheço essa palavra de um jogo de cartas colecionáveis:

Magic: The Gathering!

Muitíssimo obrigado!

Resposta:

Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra mana é ou era usada pelos povos melanésios, no sentido de «força ou poder impessoal e sobrenatural que pode estar concentrado em objetos ou pessoas e que pode ser herdado, adquirido ou conferido». É palavra que provém de vocábulo polinésio mana, com o mesmo significado.

Convém não confundir mana com mana, feminino de mano, hipocorístico (termo carinhoso) de irmão, nem com maná, «alimento delicioso», do latim manna, no sentido de 'alimento', adaptação do «grego mánna e este do aramaico mannā (derivado de(o) hebraico n)» (ibidem).