Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Diz-se numa resposta anterior: «O uso de p maiúsculo em Península Ibérica não é recente. Já em 1947, Rebelo Gonçalves no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (pág. 338/339), assinalava algumas combinações vocabulares que "apesar de baseadas em palavras designativas de acidentes geográficos, formam no seu conjunto locuções toponímicas e, consequentemente, não dispensam a maiúscula inicial naqueles elementos: Grandes Lagos, Península Ibérica, etc.»". Pergunta: a maiúscula em Península aplica-se apenas a «Península Ibérica» (é um caso excecional) ou este acidente geográfico deve sempre ser grafado com caixa alta?

Obrigado.

Resposta:

O geónimo Península Ibérica reduz-se muitas vezes a Península, também com maiúscula inicial.

Na grafia deste geónimo, têm-se mantido desde os anos 40 do século passado os critérios aplicados aos nomes designativos de acidentes geográficos, conforme foram formulados por Rebelo Gonçalves no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, p. 337-339), a saber:

– emprega-se minúscula inicial «nos substantivos que significam acidentes geográficos, tais como arquipélago, baía, cabo, ilha, lago, mar, monte, península, rio, serra, vale e tantos outros, quando seguidos de designações que os especificam toponimicamente: [...] península de Malaca [...]» (p. 338);

– contudo, «há combinações vocabulares que não se integram no preceito anterior, porque, apesar de baseadas em palavras designativas de acidentes geográficos, formam no seu conjunto locuções toponímicas e, consequentemente, não dispensam a maiúscula inicial aqueles elementos: Grandes Lagos, Península Ibérica, etc. [...]» (idem, pp. 338/339).

Na mesma fonte, indica-se em nota que a redução de Península Ibérica é Península, com inicial maiúscula (idem, ibidem). Anos mais tarde, no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), Rebelo Gonçalves consigna igualmente Península com maiúscula inicial, forma que descreve como «redução de Península Hispânica ou Península Ib...

Pergunta:

"Borrada" (de borra) e "burrada" (de burro) podem considerar-se sinónimos, no sentido de «asneira, tolice»?

Resposta:

Os substantivos borradaburrada são quase sinónimos com a particularidade de também serem homófonos, pelo menos em Portugal, onde se pronunciam da mesma maneira: [buR′adɐ].

Por borrada, entende-se «ato ou efeito de borrar», e borrar é «sujar, manchar» (cf. Dicionário Houaiss). Mas a palavra borrada é bastante usada atualmente no sentido genérico de «porcaria», o que permite incluir aceções como «coisa mal feita; grande asneira» e, até, «ação indecorosa» (cf. dicionário de Português da Porto Editora, disponível na Infopédia). Tudo isto explica que já se registe uma expressão que, pelo menos, em Portugal, ocorre com frequência no registo coloquial: «sair uma (grande) borrada», que é o mesmo que «dar mau resultado», «dar asneira» (cf. idem, ibidem).

Sucede que burrada, que inicialmente era um derivado e coletivo de burro, é hoje também empregado como sinónimo de asneira, assim convergindo com borrada, como se viu, também interpretável com esse significado.

Refira-se ainda que asneira, «disparate, tolice», é um derivado de asno, no sentido figurado de «palerma, estúpido, ignorante», que vem a ser, afinal, a significação de burro quando proferido com a intenção de insultar.

Em suma, borrada ...

Pergunta:

Devemos escrever Canaã, Caná, Qana ou como?

Muito obrigado pelo vosso excelente trabalho!

Resposta:

Os nomes em questão relacionam-se com a faixa costeira que vai da Síria ao Egito, abrangendo, portanto, os territórios do Líbano e de Israel. A forma Canaã é empregada: a) como antigo nome da Palestina; b) como nome de um dos filhos de Cam, amaldiçoado por Noé (Génesis 9).

Quanto a Caná, trata-se do nome de uma cidade da Galileia que é o cenário do conhecido episódio bíblico das Bodas de Caná e que costuma identificar-se com a atual cidade de Qana no sul do Líbano. No entanto, também se opina que Caná terá hoje localização incerta, podendo corresponder a uma de quatro localidades no atual território israelita.

Apesar da sua semelhança, não parece que Canaã e Caná tenham relação etimológica.

Pergunta:

Vi recentemente que havia um «mercado caramelo» em Pinhal Novo e pensei que seria de doces. Mas depois vi «sopa caramela» e a imagem é como sopa de pedra, nada de caramelo, e finalmente «cultura caramela». Qual o significado ou raiz deste termo caramelo(a)? É desta região, como alfacinho ou tripeiro?

Obrigado.

Resposta:

Trata-se efetivamente de uma alcunha que já se usa como gentílico de uso popular para designar os naturais da região de Palmela. Parece que o termo começou por ser usado depreciativamente para identificar os trabalhadores oriundos da Beira Litoral que iam para o Alentejo. Mas não há certezas quanto à origem do nome, que alguns autores atribuem a uma deturpação de Caramulo, nome da serra – «serra do Caramulo» –  que domina a paisagem das terras baixas do litoral, entre o Mondego e o Vouga.

Pergunta:

Quando me refiro à Bíblia, digo que é algo bíblico, leis bíblicas, etc. E quando me refiro ao Torah/Torá? Digo que é algo "toraico"? Leis "toraicas"? E ao Alcorão?

Desde já agradeço pela atenção.

Resposta:

De Torá1, pode-se criar corretamente o termo "toraico", muito embora este ainda não se encontre dicionarizado. Mas é palavra legítima, tendo em conta que, de Mixná, outro termo referente ao judaísmo, se deriva mixnaico, que tem registo lexicográfico (cf. Dicionário Houaiss e Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa).

Quanto a Alcorão, o adjetivo correspondente é alcorânico. Embora não se aconselhe a forma Corão, nota-se que corânico é o adjetivo relacional geralmente usado; é o que sucede, por exemplo, no Corpus do Português (de Mark Davies), que, aliás, não faculta nenhum resultado para alcorânico. Esta seria, sem dúvida, a forma correta e recomendável, até porque deriva do nome tradicional português; contudo, parece atualmente difícil combater a força do uso para pretender que uma «escola corânica» passe a ser, como deve, uma «escola alcorânica».

1 O nome próprio Torá identifica as escrituras religiosas judaicas, incluindo os livros que no contexto cristão são conhecidos como Pentateuco (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio). Em português, também se registam e aceitam ...