Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho notado que é comum em textos portugueses a construção «tem vindo a» + infinitivo para designar ações iniciadas no passado e que chegam ao presente, como na frase «o desempenho do Pedro na escola tem vindo a melhorar nos últimos meses». Posso estar enganado, e talvez uma consulta aos corpora das duas variantes mo esclareça, mas me parece que não se usa tal construção no Brasil: eu diria e escreveria, sempre, «o desempenho do Pedro na escola tem melhorado nos últimos meses». Como ambas as construções se usam em Portugal, gostaria de saber se há diferença semântica entre elas ou se se equivalem, e, caso se equivalham, qual delas é mais antiga na língua.

Resposta:

A perífrase formada por «vir a » + infinitivo ocorre com frequência significativa no português de Portugal. O mesmo não se pode afirmar acerca do português do Brasil, como bem observa o consulente.

A perífrase verbal «vir a» + infinitivo é frequente no português de Portugal, tendo especial  relevo a sua ocorrência no pretérito perfeito do indicativo:

1. O desempenho dele veio a melhorar mais tarde.

A leitura que se faz desta construção é quase semelhante à do pretérito perfeito do indicativo do verbo principal («melhorou mais tarde»), mas junta muitas vezes um matiz concessivo, próximo do «acabar por» + infinitivo:

2. (apesar de tudo) o desempenho veio a/acabou por melhorar.

O pretérito perfeito composto da perífrase em causa – «tem vindo a melhorar» – é mais uma possibilidade, que junta o referido matiz ao pretérito perfeito composto do verbo principal.

Fazendo uma consulta ao Corpus do Português (de Mark Davies), depressa se conclui que tem fundamento a impressão descrita pelo consulente. Com efeito, são escassas, para não dizer nulas, as ocorrências de «vir a» + infinitivo no pretérito perfeito composto do indicativo que provenham de textos identificados como brasileiros. Os textos recentes não facultam exemplos, a não ser num caso, em que a ocorrência de «tem vindo a» + infinitivo provém afinal da citação de um texto de autor português. Os textos brasileiros mais antigos – do século XIX às primeiras décadas do século XX&#...

Pergunta:

A frase «começar do começo» é um pleonasmo vicioso? A justificativa é que só se começa do começo? Ou há erro em tal afirmação?

Resposta:

Em princípio, a frase constitui de facto um pleonasmo, porque há uma noção que se repete, ou seja, para citar o consulente, obviamente que só se «começa do/pelo começo». Não obstante, não se descarte este pleonasmo como inútil e vicioso.

Na verdade, se, por um lado, começar é «principiar, dar começo», por outro, começo significa o ponto onde começa, principia ou se inicia alguma coisa. Sendo assim, «começar pelo começo» é literalmente «dar começo ao começo» ou «começar a começar», que são evidentes redundâncias, pois, do ponto de vista informativo, começo nada acrescenta a começar. Contudo, os pleonasmos podem ter aproveitamento literário (ver Textos Relacionados) e ocorrem muitas em certos textos, com umas vezes enfaticamente (como reforço), outras com propósito irónico ou humorístico. Exemplo: «Para começar do/pelo começo, é preciso que se diga....». Neste caso, o pleonasmo tem paradoxalmente valor expressivo e torna-se uma maneira de dizer o mesmo que «para começar pelo que é prioritário» ou «para começar de maneira metódica». Refira-se, aliás, que já se tornou um lugar-comum uma expressão sinónima e não menos redundante: «Para começar pelo princípio», a qual se emprega (e da qual se abusa, acusando falta de criatividade) no sentido de «para contar tudo desde o princípio» ou no de «para referir o primeiro aspeto/argumento da exposição/argumentação que a seguir se desenvolve».

Cf. 10 pleonasmos comuns que deve evitar

Pergunta:

Como se escreve corretamente o nome do pico do Areeiro, na ilha da Madeira? É comum ver-se escrito «Pico do Arieiro», com i, em jornais e até no respetivo artigo na Wikipédia. No entanto, penso ser Areeiro, com e, a forma correta, pois o nome tem a mesma origem de areia e consta noutros topónimos portugueses.

Resposta:

A forma correta do topónimo em questão é efetivamente Areeiro, mantendo na grafia o e que se encontra em areia, palavra que está na sua origem.

Convém explicar por que razão se chama assim este acidente geográfico, visto que pode ser surpreendente que um topónimo aluda a acumulação de areia, que geralmente se encontra em terras baixas, à beira-mar ou à beira-rio, e não à altitude já importante de 1818, que é a deste cume. Socorramo-nos, portanto, da informação contida no blogue Madeira – Gentes e Lugares, em publicação datada de 30/8/2008 (manteve-se a ortografia do original):

«AREEIRO – O termo areeiro no vocabulário popular madeirense significa "lugar ou local onde existe um depósito de areão ou uma área de terreno areento", conforme define o Padre Fernando Augusto da Silva, no seu opúsculo Vocabulário Madeirense, editado em 1950 pela Junta Geral do Funchal com prefácio do Cónego F. C. de Meneses Vaz. Assim, um areeiro na Madeira é um aglomerado ou depósito de piroclastos, provenientes de erupções vulcânicas explosivas. Estes materiais piroclásticos, por vezes, encontram-se alterados e argilificados pela acção dos agentes erosivos (chuva, granizo, neve, etc.) e são de granulometria variável. Os locais ou lugares de concentração destes piroclastos são denominados pelos madeirenses com o topónimo de areeiro. São exemplos: o Chão do Ar...

Pergunta:

Escreve-se «morrer à fome» ou «morrer de fome»?

Contexto: «Quase morri à fome» vs. «Quase morri de fome».

Obrigado.

Resposta:

Aceitam-se as duas locuções, conforme se indica no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, em subentrada ao artigo correspondente a fome:

«morrer à/de fome. 1. Alimentar-se muito mal. 2. Não possuir nada do que é essencial à vida.»

Também o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa de Énio Ramalho regista como sinónimas as expressões «morrer à fome» e «morrer de fome».

Pergunta:

Já aqui se respondeu a questões relativas a «a princípio», «por princípio», «em princípio» e «no princípio». A minha questão é outra: «ao princípio» também é admissível, no mesmo sentido de «a princípio»?

Muito obrigado.

Resposta:

As duas são aceitáveis, no sentido de «na fase inicial; inicialmente, no princípio» (Dicionário Houaiss), embora «ao princípio» seja mais coloquial.

Com efeito, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista como sinónimas e variantes uma da outra as expressões «a princípio» e «ao princípio», que figuram como subentrada de princípio. A consulta dos textos reunidos no Corpus do Português (de Mike Davies) permite observar que as duas expressões ocorrem em contextos estruturalmente semelhantes, sendo ambas interpretáveis como incialmente:

1. « Estava ao princípio com medo que o Machado tivesse a ideia de nomear para padrinho aquele idiota do Sigismundo, com quem andava sempre.» (Eça de Queirós, Alves & Companhia, 1925 in Corpus do Português)

2. «Comecei a recear o turbilhão que, a princípio, cuidara não passasse dum entretenimento.» (José Rodrigues Miguéis, Páscoa Feliz, 1932, idem)

Nota-se, mesmo assim, que, na referida aceção, «a princípio» predomina sobre «ao princípio», a...