Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Pode substituir-se a frase «terminarei isto em seis dias» por «terminarei isto em dois tríduos», sem perda de sentido quanto ao tempo em que a tarefa será concluída ?

Resposta:

Emprega-se a palavra tríduo, no sentido de «sequência de três dias» e «festa que dura três» (cf. tríduo, Dicionário Houaiss).

É, portanto, possível dizer «dois tríduos» como sinónimo de «seis dias», muito embora não seja tríduo uma palavra corrente. Na verdade, trata-se de um vocábulo culto – vem diretamente do latim tridŭum, i, «intervalo de três dias» (idem, ibidem) –, mas de uso pouco frequente mesmo na comunicação mais formal ou na expressão literária (observe-se que não ocorre no Corpus do Português). Sendo assim, no discurso quotidiano, se já parece insólita uma frase como «termino isto dentro de um tríduo», mais inusitado será anunciar o remate de alguma coisa no prazo de «dois tríduos», quando simplesmente se declara a intenção de acabar uma tarefa em meia dúzia de dias.

Pergunta:

Deparei com uma frase onde se pode ser que «o Luís postou-se de frente ao Pedro». Pergunta: não deveria ser «em frente a» ou «defronte a»? A construção «de frente a» é admissível e, se sim, é admissível neste contexto?

Obrigado.

Resposta:

Não se recomenda o uso da sequência «de frente a» como locução prepositiva.

Como locuções prepositivas, os dicionários registam as sequências «em frente de», «em frente a» e «de frente de», mas não «de frente a» (cf. frente no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Pode, no entanto, ocorrer sozinha a expressão «de frente», como locução adverbial: «A luz batia-lhe na cara, iluminava-lhe de frente a expressão contraída e triste. » (Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 1953, in Corpus do Português).

Quanto a defronte, figura este advérbio nas locuções prepositivas «defronte de», muito frequente, e «defronte a», menos frequente, conforme se pode confirmar, por exemplo, numa consulta do Corpus do Português (idem).

Pergunta:

Na literatura, encontra-se muitas vezes a expressão «ao cair da noite» e nunca «ao cair a noite». Esta última não se usa por não ser correta? Ou ambas estão corretas e têm o mesmo significado, mas a primeira é mais adequada? Por exemplo:

«Ao cair da noite, o homem desapareceu.»

«Ao cair a noite, o homem desapareceu.»

Estarão ambas as frases corretas?

Muito obrigada!

Resposta:

Ambas as frases estão corretas, mas correspondem a estruturas sintáticas diferentes.

«Ao cair da noite» é a expressão que ocorre geralmente no discurso, com o significado de «no momento em se fazia noite» ou «ao anoitecer»:

1. «A filha de Maria Ema regressava da praia ao cair da noite, regressava com os livros às costas atados por uma correia.» (Lídia Jorge, O Vale da Paixão: Romance, 1998 in Corpus do Português)

Nesta expressão, cair é usado como um substantivo («o cair»), o que explica que seja depois modificado por uma expressão introduzida pela preposição de, como se fosse uma construção de posse: «o cair da noite» (cf. «o período da noite», «o frio da noite»). A presença da preposição a marca um valor temporal, tal sucede com «ao sinal de avanço» (= «no momento em que se faz o sinal de avanço»).

Quanto a «ao cair a noite», a estrutura é diferente, porque se trata de uma oração de infinitivo com sujeito explícito: «ao cair a noite» = «quando a noite cai/caiu/cair».

Pergunta:

Tenho ouvido a forma verbal espartilhar ser usada em contextos cujos sentidos são os de «estar repartido por» ou «estar dividido em várias partes ou segmentos», como por exemplo «os critérios de avaliação estão espartilhados em vários domínios». Parece-me que a palavra é derivada por sufixação cuja base é espartilho que apresenta um sentido oposto («apertar», «comprimir»). A palavra pode ter aquela aceção?

Obrigada.

Resposta:

Espartilhar é efetivamente um derivado do radical de espartilho (espartilh-) e, como verbo, não significa «repartir», mas, sim, «apertar muito» (com espartilho ou não, se usado metaforicamente). Sendo assim, uma frase «os critérios de avaliação estão espartilhados em vários domínios» apresenta uma impropriedade vocabular, se com espartilhar a intenção é dizer «repartir». Tal como está, a frase significa literalmente  que os critérios são numerosos, de tal maneira que os domínios que os contêm são em número inferior, sem a variedade conceptual ou o grau de generalidade que os abranjam convenientemente, como se fossem um espartilho muito apertado.

Segundo o Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira, de 2001), o substantivo espartilho aplica-se a uma «cinta longa e de corte anatômico, que vai dos quadris até abaixo dos seios, feita de tecido resistente e provida de barbatanas de baleia ou lâminas de aço para que não enrugue e com ilhoses de cima a baixo, por onde se passam longos cadarços, que são puxados para apertar ao máximo o abdome e a cintura da mulher, afinando-os, no intuito de torná-la bonita, segundo determinado padrão de beleza e elegância corporal».

Pergunta:

Estou a rever um livro em que os tradutores usam várias vezes a expressão «Seria que» em vez do «Será que», mais habitual. Por exemplo: «Seria que me pode dar um copo de água?». Esta construção faz algum sentido?

Obrigado.

Resposta:

Com o verbo no condicional – ou como se diz na terminologia gramatical brasileira, no futuro do pretérito –, a expressão «seria que» não é compatível com uma oração com o verbo no presente do indicativo, pelo que a forma correta corresponde a «será que»:

1. Será que me pode dar um copo de água?

Quanto a «seria que», é esta expressão compatível com uma oração cujo verbo se encontre ou em tempos do pretérito ou no condicional:

2. «Seria que Walter pensava que tudo iria ficar impune na sua vida? » (Lídia Jorge, O Vale da Paixão: Romance, 1998 in Corpus do Português); «pensava» está no imperfeito do indicativo)

3. «Seria que Tom daria o nome de ultraje a tais manifestações?» (Abel Botelho, Fatal Dilema, 1917, idem; «daria» está no condicional)

Note-se, porém, que a «será que» pode seguir-se uma oração com o verbo quer no presente, como em 1, quer nos tempos do pretérito e no condicional:

4. «Tenho pensado mas é sobre qual era exactamente a minha relação com ele. Será que ele gostava de mim? E eu, gostava dele?» (António Alçada Baptista, Os Nós e os Laços, 1985, idem)

5. «Será que a FOZCOAINVEST S.A.