Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber se o verbo desarriscar pode ser usado no sentido de «apagar algo que foi escrito», ou se esta forma é um regionalismo.

Resposta:

Não se trata de regionalismo, uma vez que os dicionários gerais acolhem desarriscar, com o significado não propriamente de «apagar», mas antes de «riscar o que está escrito» e, por extensão, «desobrigar alguém»*. Tais dicionários registam desarriscar e derriscar como o mesmo que «riscar aquilo que estava escrito» e «pôr uma nota no nome dos que já cumpriram um preceito a que estavam obrigados», «riscar o nome de um devedor ou o montante de uma dívida» e «tirar o nome de uma lista, de um elenco» (cf. Dicionário Houaiss e dicionário da Academia das Ciências de Lisboa**).

*N. E. (atualização) – Contudo, desarriscar evoca a religiosidade popular como verbo associado ao substantivo desarrisca, «nota de desobriga quaresmal» (isto é, a dispensa do jejum quaresmal), e à expressão «ir à desarrisca», entendida como «confessar-se», conforme regista o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Esta fonte atribui assim a desarriscar, além do sentido genérico já mencionado, a aceção de «fazer com que o pároco ponha a desarrisca no caderno, desobrigar-se».

** N. E. (atualização) – Trata-se da 1.º edição do Dicionário Houaiss, de 2001; a edição de 2009 não acolhe desarriscar. O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa remete a entrada desarriscar para derriscar, que além de ser sinónimo de riscar, é igualmente apresentado como sinónimo de desobrigar.

Pergunta:

Pergunta semelhante foi já respondida em 2003, por Marta Pereira, mas não tendo (eu) ficado convencido... decidi insistir. Espero que não levem a mal até porque, seguramente, nem todos os especialistas (não é o meu caso) estarão, sempre, de acordo sobre tudo.

Aqui vai: quando alguém pretende rogar perdão, solicitar indulgência, mostrar arrependimento ou suscitar absolvição por motivo de uma falha por si cometida, por algo que lhe pesa na consciência ... deve, forçosamente, «pedir desculpas»... ou pode, tão-somente, «apresentar desculpas»? «Apresento o meu mais profundo pedido de desculpas pelo acto que cometi», ou «apresento as minhas mais profundas desculpas pelo acto que cometi»?

Eu diria que só a primeira é que estará correcta... pois entendo, de forma empírica, que somente o sujeito ofendido é que pode, se assim entender, apresentar/outorgar as suas desculpas ao sujeito ofensor. Desculpá-lo, portanto. Perdoar. O sujeito ofensor deve solicitar/pedir que lhe concedam/outorguem/apresentem as respectivas desculpas ... mas deve, antes disso, pedir/rogar/requerer as mesmas. Porque se for o ente ofensor a «apresentar desculpas», diria até que se invertem os papéis, pois fica a clara impressão de que o ofendido é que está a precisar, ou à espera, de que alguém lhe transmita/dê/apresente/conceda as respectivas desculpas (por algo que, manifestamente, não cometeu). Uma completa inversão da realidade, no meu entender. Mas isto sou eu, um leigo na matéria, a pensar.

Qual é, por favor, o vosso entendimento?

Obrigado.

Resposta:

A expressão «apresentar desculpas» é tão legítima como «pedir desculpas», porque a palavra desculpa não se comporta como perdão.

Com perdão, apenas quem foi paciente ou alvo de ação danosa pode «dar perdão», «conceder perdão».Com desculpa, o agente da ação danosa (ou quem tenha ou sinta responsabilidade por isso) tanto pode «pedir desculpa» como «apresentar desculpas», porque no primeiro caso «desculpa» é equivalente a «perdão», enquanto  no segundo é equivalente a «justificativa».

Note-se que o próprio verbo correspondente permite esta dualidade:

1. Ele desculpou o filho do mau comportamento/desculpou o mau comportamento do filho. [= «perdoou»]

2. O filho desculpou-se pelo mau comportamento. [= «justificou-se»; neste caso, o verbo torna-se reflexo]

Acrescente-se que o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista como subentradas associadas a desculpa tanto a expressão «pedir desculpa» como «apresentar desculpas», dando-se a esta última, registada como equivalente a «solicitação de perdão», um tom mais formal. Semanticamente próximas, são ainda as locuções coloquiais «dar uma desculpa» e «arranjar uma desculpa», nas quais desculpa é sinónimo de escusa ou pretexto (cf. idem, ibidem).

Pergunta:

As palavras geral/gerais e general/generais são semanticamente equivalentes nos seguintes contextos ?

«O aspeto geral/general dessa ciência é...»

«Os aspetos gerais/generais dessa ciência é...»

E "geralidades"/"generalidades"?

«As geralidades/generalidades da mecânica clássica são...»

Resposta:

Apesar de, como sinónimos, no sentido de «não específico», geral e general terem registo nos dicionários (ver o Dicionário Houaiss, Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) , a forma que se usa adjetivalmente é geral, e não general, que nessa aceção se tornou arcaísmo: «O aspeto geral/os aspetos gerais dessa ciência...» No entanto, quando se trata do superlativo absoluto de superioridade, diz-se e escreve-se generalíssimo, cujo radical é general-. Como palavra autónoma, emprega-se o substantivo general, referente ao posto militar logo abaixo de marechal (cf. Dicionário Houaiss). Observe-se que o adjetivo geral e a variante general remontam ao latim generālis, e, «que pertence a uma espécie, particular; geral, universal, que convém a tudo, de gênero» (idem, ibidem).

Quanto a "geralidade", é forma teoricamente possível que não se usa. O substantivo que está consagrado é generalidade, com  os significados de «maior parte» e «princípio geral»: «na generalidade dos casos, não há razões para alarme»; «só disse generalidades».

Pergunta:

A minha pergunta pode ser simples, mas é para mim uma dor de cabeça, e já tentei, sem sucesso, pesquisar a resposta. É a seguinte:

Os atratores da próclise atraem todos os clíticos da frase, ou apenas o mais próximo? Exemplo, qual destas frases seria correta:

a) «Nunca se dignou a aproximar-se», ou b) «Nunca se dignou a se aproximar»?

Qual destas é a correta?

Desde já agradeço a vossa colaboração!

Resposta:

Os chamados atratores de próclise1 só afetam os pronomes átonos (também chamados clíticos) que estão mais próximos.

Quando se trata de construções de auxiliar + verbo principal no infinitivo (p. ex., vai aproximar-se) ou verbo principal + oração com verbo no infinitivo (p. ex., deseja aproximar-se), os chamados atratores de próclise1 só afetam os pronomes que estão ou podem estar ligados ao verbo auxiliar ou aos verbos principais:

1. Nunca vai aproximar-se.

2. Nunca se vai aproximar.2

Em 1, o advérbio nunca não afeta o pronome átono (clítico) se que está associado ao verbo principal (aproximar-se). Contudo, em 2, já exerce a sua atração, porque o clítico se está associado ao auxiliar, como comprova a afirmativa equivalente: «vai-se aproximar» > «nunca se vai aproximar».

No caso de verbos como desejar ou dignar-se (podendo este último ter preposição ou não), seguidos de uma oração com o verbo no infinitivo, também o advérbio nunca e as palavras de comportamento semelhante só têm ação sobre os clíticos que apareçam associados a esses verbos (o ? assinala problemas de aceitabilidade):

3.a. Nunca desejou aproximar-se.

   b. ?Nunca se desejou aproximar.3

5. a Nunca se dignou aproximar-

Pergunta:

É correto escrever-se a palavra seara com a letra c em vez de s? Sempre escrevi seara com s, mas um amigo meu diz que aprendeu com c, e que as duas formas estão corretas. Estão?

Resposta:

A palavra seara sempre se escreveu com s.

A grafia com s inicial, além de tradicional, deve-se também à sua origem em SENARA-, «campo de terra para semeadura» ou «campo que se reservava o senhor feudal e que devia ser cultivado por seus vassalos» (cf. Dicionário Houaiss), palavra pré-latina que se integrou no latim falado na antiga província romana da Hispânia e que passou depois às línguas românicas surgidas na parte central e ocidental da Península Ibérica.

O Dicionário Houaiss assinala que seara talvez venha «de um céltico *senăra 'campo que se lavra à parte', composto de prefixo sen- "à parte, separado" + -ar- "arar"; este vocábulo teve na parte ocidental da península Ibérica a acentuação sobre a sílaba -na-, daí o leonês senara, o galego e o português seara, ao passo que no espanhol antigo era sénera (831), provavelmente por adaptação à fonologia latina, tendo evoluído por meio de síncope da vogal postônica e posterior metátese -nr-> -rn- para o atual serna; [...]»

Note-se, porém, que o próprio Dicionário Houaiss apresenta como atestação de seara a forma senra (num documento do ano 933), que sugere que no ocidente peninsular também se usou uma forma esdrúxula *sénera ou *sénara, em cuja sílaba átona -ne ou -na- caiu a vogal (síncope1). A diferença em relação com o castelhano está no facto de nos dialetos galego-portugueses não se ter operado a troca de consoantes (metátese2) que se registou na forma castelhana.

Observe-se que de seara se criaram vários topónimos quer em Portugal quer na Galiza. Mas a variante mencionada, ...