Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Como se escreve corretamente o nome do pico do Areeiro, na ilha da Madeira? É comum ver-se escrito «Pico do Arieiro», com i, em jornais e até no respetivo artigo na Wikipédia. No entanto, penso ser Areeiro, com e, a forma correta, pois o nome tem a mesma origem de areia e consta noutros topónimos portugueses.

Resposta:

A forma correta do topónimo em questão é efetivamente Areeiro, mantendo na grafia o e que se encontra em areia, palavra que está na sua origem.

Convém explicar por que razão se chama assim este acidente geográfico, visto que pode ser surpreendente que um topónimo aluda a acumulação de areia, que geralmente se encontra em terras baixas, à beira-mar ou à beira-rio, e não à altitude já importante de 1818, que é a deste cume. Socorramo-nos, portanto, da informação contida no blogue Madeira – Gentes e Lugares, em publicação datada de 30/8/2008 (manteve-se a ortografia do original):

«AREEIRO – O termo areeiro no vocabulário popular madeirense significa "lugar ou local onde existe um depósito de areão ou uma área de terreno areento", conforme define o Padre Fernando Augusto da Silva, no seu opúsculo Vocabulário Madeirense, editado em 1950 pela Junta Geral do Funchal com prefácio do Cónego F. C. de Meneses Vaz. Assim, um areeiro na Madeira é um aglomerado ou depósito de piroclastos, provenientes de erupções vulcânicas explosivas. Estes materiais piroclásticos, por vezes, encontram-se alterados e argilificados pela acção dos agentes erosivos (chuva, granizo, neve, etc.) e são de granulometria variável. Os locais ou lugares de concentração destes piroclastos são denominados pelos madeirenses com o topónimo de areeiro. São exemplos: o Chão do Ar...

Pergunta:

Escreve-se «morrer à fome» ou «morrer de fome»?

Contexto: «Quase morri à fome» vs. «Quase morri de fome».

Obrigado.

Resposta:

Aceitam-se as duas locuções, conforme se indica no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, em subentrada ao artigo correspondente a fome:

«morrer à/de fome. 1. Alimentar-se muito mal. 2. Não possuir nada do que é essencial à vida.»

Também o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa de Énio Ramalho regista como sinónimas as expressões «morrer à fome» e «morrer de fome».

Pergunta:

Já aqui se respondeu a questões relativas a «a princípio», «por princípio», «em princípio» e «no princípio». A minha questão é outra: «ao princípio» também é admissível, no mesmo sentido de «a princípio»?

Muito obrigado.

Resposta:

As duas são aceitáveis, no sentido de «na fase inicial; inicialmente, no princípio» (Dicionário Houaiss), embora «ao princípio» seja mais coloquial.

Com efeito, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa regista como sinónimas e variantes uma da outra as expressões «a princípio» e «ao princípio», que figuram como subentrada de princípio. A consulta dos textos reunidos no Corpus do Português (de Mike Davies) permite observar que as duas expressões ocorrem em contextos estruturalmente semelhantes, sendo ambas interpretáveis como incialmente:

1. « Estava ao princípio com medo que o Machado tivesse a ideia de nomear para padrinho aquele idiota do Sigismundo, com quem andava sempre.» (Eça de Queirós, Alves & Companhia, 1925 in Corpus do Português)

2. «Comecei a recear o turbilhão que, a princípio, cuidara não passasse dum entretenimento.» (José Rodrigues Miguéis, Páscoa Feliz, 1932, idem)

Nota-se, mesmo assim, que, na referida aceção, «a princípio» predomina sobre «ao princípio», a...

Pergunta:

Quantos deíticos contém a frase «por aqui passou gente famosa»?

Resposta:

Na frase em questão, ocorrem dois deíticos: o advérbio aqui e a forma verbal passou, no pretérito perfeito do indicativo.

Costuma-se identificar imediatamente os deíticos – palavras «cuja significação referencial só pode ser definida em função da situação, do contexto, do locutor e do recetor de um ato de fala (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa; atualizou-se a ortografia)» – com os pronomes pessoais de 1.ª e 2.ª, os advérbios de lugar (aqui, , ali, , ), os advérbios de tempo (agora, ontem, hoje, amanhã) e os determinantes e pronomes demonstrativos (este, esse, aquele, isto, isso, aquilo). Contudo, o conceito de deítico abrange também os tempos verbais organizados em função do momento da enunciação, marcado pelo advérbio agora. Como explica Fernanda Irene Fonseca ("Deixis e Pragmática Linguística" in Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, org. I. H. Faria et al., Lisboa, Caminho, 1996, págs. 442/443; atualizou-se a ortografia)1:

«Quanto à componente do contexto que é ativada semanticamente pela utilização dos deíticos, distinguem-se, fundamentalmente, os três tipos clássicos de deixis: pessoal, espacial e temporal. [...] A deixis temporal diz respeito à utilização do momento da enunciação (AGORA) como marco de referência para a localização temporal, O tempo, tal como o concebemos através da linguagem, é de natureza deítica: presente, passado e futuro não são noções absolutas, são relativas ao momento da enunciação. A interpr...

Pergunta:

Em português de Portugal, podemos dizer que fazemos algo «de coração» (e.g. «ela desejava de coração que o António fosse viver com ela outra vez»; «eu sei que ele me perdoou de coração e não guarda nenhum tipo de rancor», «o que eu fiz pela minha mãe, fi-lo de coração», etc.)?

Resposta:

Embora conhecida no português de Portugal, mesmo no âmbito literário, parece que a locução «de coração» tem maior tradição no Brasil.

Na atualidade, parecem encontrar-se sinais, pelo menos, no léxico – incluindo as expressões fixas –, de alguma certa convergência entre as diferentes variedades do português, a que não será estranha a facilidade de comunicação entre falantes de regiões diferentes e afastadas. Esta situação talvez seja mais observável em Portugal, em consequência do contacto prolongado com o português do Brasil pelos meios audiovisuais ou pela presença de comunidades não só desse país mas também de outros países de língua portuguesa. Não admira, por isso, que por vezes o uso de certas expressões se evidencie como mais típico do Brasil ou de Angola, sem que tal exclua a sua deteção em Portugal com frequência crescente.

Relativamente a «de coração», em vários dicionários gerais e especializados, portugueses ou brasileiros, encontram-se habitualmente registos das expressões «do coração» e «de todo o coração» – e não simplesmente «de coração». No entanto, um dicionário brasileiro – o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (2004) – acolhe como subentrada de coração a locução «de (todo) coração», que significa «com todo o prazer, sinceramente» e cujo registo sugere que se emprega quer como «de todo coração» quer como simplesmente «de coração». E, querendo comparar textos portugueses com textos brasileiros por meio do Corpus do Português (CP), nota-se que é mais frequente ocorrer «de coração» a modificar verbos nos textos do Brasil. Na verdade, no CP, em 64 ocorrências de «de coração», 14 estão a...